O relato a seguir foi contado a mim por um homem que conheci há um ano. Na época eu estava cuidando de um familiar que ficou hospitalizado e o encontrei no mesmo quarto com meu parente e mais duas pessoas. O leito dele ficava perto da janela. Estava com os olhos enfaixados e nunca recebia visita. Comecei a ficar curioso com ele. Tinha uns 35 anos, cabelos grisalhos, corpo fino e nariz adunco. Para uma pessoa que não estava conseguindo ver, ele demonstrava muita naturalidade em se adaptar à sua atual situação e muita destreza, principalmente na hora das refeições, quando sequer precisava de ajuda. Aproximei-me dele certo dia, quando meu familiar estava dormindo, e aproveitei pra puxar conversa. O que ele me contou nunca mais saiu da minha cabeça. Disse-lhe que eu costumava escrever alguns contos na internet e perguntei se poderia contar a sua história pro mundo. Ele consentiu e eu decidi, lembrando com detalhes de tudo o que ele havia dito, escrever em primeira pessoa. A partir daqui vou lhe contar como esse homem foi parar no hospital. A partir daqui você saberá a história desse homem que, ao falar de sua experiência, virou o rosto na direção da janela como se olhasse para o horizonte, numa mirada perdida.
"Nunca fui uma pessoa tímida. Na verdade sempre fui muito calado, na minha, mas não tinha timidez. Só não gostava muito de me relacionar com as pessoas, mas quando era preciso, eu o fazia naturalmente. A não ser por um ponto. Ponto esse que sempre foi motivo de reclamações por toda a minha vida. Meus pais sempre me alertavam para isso. Minha mãe certa vez chegou a me bater por causa disso. Eu não conseguia olhar para os olhos das pessoas.
Não é vergonha, não é timidez. Eu só acho desnecessário. Dizem que isso diz muito sobre você, que uma pessoa honesta sempre te olha nos olhos, etc... Besteira. Sou um homem honesto sem ter precisado encarar ninguém na vida. Acho até que esse encarar gera muitos problemas. Na escola, se alguém encarasse o outro já era motivo pra sair na porrada. E eu sempre achei ridículo isso. Mas não era isso que as pessoas pensavam.
"Olhe pra mim!", gritava minha mãe. "Quando eu falar com você, olhe nos meus olhos.", advertia-me a professora. "Olhe nos meus olhos", disse minha primeira namorada. Mas eu não conseguia. Simplesmente não dava. Eu sempre desviava os olhos. Sempre atentava para outra coisa. Não que eu não prestasse atenção. Sempre fui atencioso. Não precisava olhar nos olhos das pessoas para entender o que elas estavam falando. Tanto que fui um bom aluno na escola, fui um ótimo orador na universidade e sou um exemplar funcionário na empresa em que trabalho. Mas as pessoas não são satisfeitas como eu. A questão de não olhar nos olhos continuava sendo um problema, não importava o quanto eu me saísse bem em algo.
"Você precisa olhar para as pessoas", dizia meu patrão, mesmo depois de eu entregar-lhe, adiantado, o trabalho a que fui designado. Há essa necessidade nas pessoas de serem encaradas. Elas chegam a sentirem-se ofendidas com isso, caso não o faça. Comigo é o contrário. Mesmo assim eu segui com minha vida. Ignorava as constantes reclamações das pessoas e continuava meu caminho. Então encontrei uma pessoa que não se importou com isso. Óbvio que me apaixonei. Ela me amava. Eu podia ver nos seus atos. Não precisava ver em seus olhos. Achou estranho, no começo, o fato de eu nunca olhar em seus belos olhos castanhos, mas respeitou isso e não se importou mais. Vi ali a oportunidade de constituir um lar.
Nos casamos e compramos uma casa. Eu vivi feliz, pois depois de um longo dia de trabalho ouvindo idiotices sobre meu hábito, eu poderia chegar em casa e receber o carinho e a compreensão de alguém. Mas felicidade é névoa. É sopro. É fugaz. E um dia eu deitei pra dormir sem saber que o meu acordar mudaria toda a minha vida.
Quando o despertador tocou eu coloquei a mão no outro lado da cama e não a encontrei. Lembrei que era terça-feira e ela sempre saia mais cedo que eu pro seu trabalho. Mas deixara meu café da manhã pronto. Fiz o que faço de costume, entrei no carro e segui para o trabalho. Tudo parecia normal. Demorei 15 minutos para chegar e antes de sair do carro lembrei de pegar umas moedas pra dar ao mendigo que dormia na calçada da entrada da empresa e todo dia me estendia a mão pedindo ajuda. Foi quando me aproximei dele que tudo começou a ficar estranho. Quando me estendeu a mão e seu rosto virou pra mim, eu dei um salto, um grito e quase caí na rua. As pessoas se surpreenderam com meu clamor e começaram a ver e comentar aquela cena. O mendigo também se assustou com meu ato. Ali, sentado na calçada, todo maltrapilho, estava o mesmo mendigo, mas onde estavam seus olhos? Isso mesmo. Pela primeira vez eu encarei uma pessoa. Não haviam olhos. Apenas as duas cavidades oculares, vazias, escuras. Meu coração acelerou e o homem perguntou se eu estava passando mal. Perguntei o que havia acontecido com os olhos dele e ele riu. Disse-me que se não queria lhe dar dinheiro tudo bem, mas não precisava fazer piada com ele. Insisti em saber o que havia acontecido, mas ele irritou-se sobremaneira e saiu com sua "cama" de papelão, resmungando, pro outro lado da rua.
Respirei fundo. Talvez o sol estivesse me causando alucinações, talvez eu estivesse delirando, não sei. Mas a situação foi só piorando, pois antes de eu entrar na empresa, olhei ao meu redor e vi, no rosto de todos os transeuntes, as cavidades vazias. O mundo pareceu girar. Eu me senti tão mal que caí de joelhos no chão e vomitei. Uma mulher tocou-me no ombro perguntando se eu precisava de ajuda. Quando a olhei me afastei. Não haviam olhos, mas ela me encarava e aquele olhar ausente me causava náuseas. Colegas da empresa saíram ao meu encontro pra saber o que estava acontecendo. Eu contei que eles não tinham olhos. No começo riram, depois, ao verem minha situação, o suor frio escorrendo pela testa e o pulso acelerado, me levaram até um hospital.
Foi difícil a consulta. Eu não conseguia tirar os olhos do médico. Senti ele meio constrangido. Perguntou se eu estava vendo normalmente e disse-lhe que apenas não via os olhos. Que haviam dois orifícios vazios nos rostos de todas as pessoas. Depois de ter dito solenemente a palavra "interessante", ele me fez mais alguns exames. E nada mudou. Passei o dia todo conversando com especialistas e fazendo testes. Constataram que seria fadiga mental e dentro em breve eu estaria voltando a ver normalmente. Não conheciam nada parecido, então agora era esperar.
Fui pra casa e minha mulher ainda não havia chegado. Fiquei impaciente esperando-a e ao mesmo tempo apreensivo, pois não sabia como ela reagiria àquela situação. Quando chegou eu estava no sofá com uma taça de vinho na mão. Sorriu pra mim. Um sorriso largo. Se aproximou, deu-me um beijo e continuou me olhando. Eu estremeci à aproximação dela. Não conseguia parar de sentir agonia ao ver os orifícios vazios. Pegou na minha mão ainda sorrindo. Um sorriso de alegria absoluta. Não lembro de vê-la tão sorridente.
- Por que está me olhando nos olhos?
A frase que eu nunca havia ouvido na vida caiu no meu estômago como pedra. Esse era o motivo da alegria dela. Me deu mais um beijo e eu lutei com todas as minhas forças pra não afastar-me, pra que ela não percebesse que eu sentia certa repulsa nesse momento. Demonstrou toda a sua felicidade em mim. Eu percebi como isso, apenas esse olhar, fazia diferença pra ela. E esse tempo todo ela sequer reclamara. E a fadiga mental, se é que existiu, nunca passou.
Decidi não contar a ela o que havia acontecido. Não contar a ninguém e levei minha vida assim. Os colegas de trabalho fizeram algumas brincadeiras, mas logo esqueceram. Continuei a não ver os olhos das pessoas, a sentir asco quando as olhava, pois por mais bizarro que fosse essa visão, eu não conseguia não encarar, não conseguia desviar os olhos. Parecia que eles exerciam grande atração sobre mim. Foi aí que as pessoas mudaram comigo. Tornaram-se mais simpáticas, mais sorridentes, mas amigáveis. Me elogiaram por agora olhar a todos nos olhos, com segurança, com sinceridade. Mas eu não gostava disso. Não as encarava por ser o que diziam, mas por achar que todos eles eram monstros.
Não conseguia me acostumar com aquilo. Várias vezes vomitei de nojo. Várias vezes acordei assustado com a minha mulher me encarando pela manhã, com aquele silêncio no lugar dos olhos. Imaginei que fosse enlouquecer. Passaram-se dias, meses e eu já não aguentava. Fiquei irritado. Com tudo. E minha esposa notou isso. Qualquer coisa já me chateava. Já era motivo pra gritos, porradas na mesa, palavrões em voz alta. Ela começou a se preocupar. E eu a repudiava. Não conseguia mais fazer e receber carinho com ela. Não conseguia mais dormir na mesma cama que ela, tanto que passei a dormir no sofá. Eu a ouvia chorar. Não via as malditas lágrimas, mas sabia que ela estava sofrendo. Mas sofrendo mais ainda estava eu.
Então, numa discussão matinal, eu extrapolei. Ambos levantaram as vozes eu eu enlouqueci. Olhava pra aqueles dois buracos no rosto dela e ficava tonto. Ela gritava, mas eu não ouvia nada. Só conseguia olhar aqueles orifícios. Ela mandou parar de olhá-la. Mandou parar de olhá-la. Só o que lembro depois foi de ter pego uma caneta que estava na escrivaninha e desferir um golpe certeiro na cavidade esquerda do seu rosto. Um grito agudo ecoou pela casa. Sangue na minha mão, sangue na mão e no olho dela. Talvez houvesse fúria no seu olho, mas eu não via. Ela saiu correndo, não sei pra onde. As coisas ficaram em silêncio. Eu fui até a cozinha cambaleando e peguei uma faca. Fui para o banheiro e me encarei no espelho. O que eu vi? Não mais meus olhos azuis e vivos, que até eu não ousava olhar, mas os dois orifícios que eu via nas pessoas. Esse vazio, esse silêncio, essa pausa e tédio eterno no lugar dos olhos. Sem pensar duas vezes eu perfurei eles com a faca, urrando de dor, e tudo ficou vermelho e depois escuro."
Quando ele terminou de falar eu lembrei de respirar. Aquele era o estranho motivo que o fizera parar naquele hospital. Perdeu a esposa. Perdeu o emprego. Perdeu a visão.
No dia seguinte a cama estava vazia. Ele recebera alta e me deixou ainda mais curioso. Descobri o endereço dele, mas quando fui até lá já era tarde. Ele havia cometido suicídio. Fora encontrado no seu quarto pendurado por uma corda. Os olhos, ou os orifícios, sangrando por causa de uma nova tentativa de se ferir mais.
Consegui entrar em sua casa e ver algumas coisas que ele deixara. Livros, muitos livros. Mas o que me chamou a atenção, o que foi motivo de seu suicídio e explicação da razão de ele ser tão destro nas suas atividades, mesmo que ele os fechasse, enfaixasse ou arrancasse, era um pequeno pedaço de papel, caído próximo à cadeira usada pra enforcar-se. Três palavras, escritas numa letra bonita, mas trêmula. Três palavras que nunca mais saíram da minha cabeça:
"Eu ainda vejo."
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