Cancelou a assinatura do jornal.
Levou um esporro da sua mãe, que foi dramática:
— Por que você cancelou a
assinatura do jornal, meu filho? Você gostava tanto!
— Agora não gosto mais. Enjoei. E
ainda por cima o jornal está me tomando tempo e atrasando o meu trabalho na
internet.
— Então não leia! Ou deixe pra ler depois!
— Mas aí eu vou gastar dinheiro à
toa com a mensalidade. E quando eu tiver tempo pra ler, ele já vai estar
passado.
— Você sabe muito bem que eu
leio. Agora como eu vou descer pra comprar o jornal todos os dias? Sabe que eu
não tenho mais idade pra andar na rua. Você nem me deixa mais sair de casa
sozinha! Agora vai ter que comprar o jornal na rua todos os dias pra mim,
então.
Benvindo pegou o telefone sem fio
da base e o deu para a mãe.
— Toma. Liga você e refaça a
assinatura no seu nome.
Na verdade, ele não queria mais ler
o jornal porque descobriu que um ex-colega da faculdade de jornalismo estava
assinando uma coluna de destaque no periódico que assinava. Não aceitava que o
ex-amigo, que parou de procurá-lo, ganhasse muito dinheiro e ficasse famoso
enquanto ele sofria com a falta de padrinhos para empregá-los em algum veículo
de comunicação e a cobrança do pai para que ele arrumasse um emprego qualquer,
em alguma área que odeia.
Já havia parado de ler o tabloide
esportivo que comprava todos os dias porque seu ex-melhor amigo Agenor também
estava trabalhando lá. Aliás, ele e mais
quatro ex-colegas, que Agenor preferiu indicar em vez dele. A desculpa que o
ex-colega deu era que Benvindo não se encaixou na vaga, não queria trabalhar de
graça e nunca corria atrás.
Benvindo sempre ouviu essa
desculpa. Como se fosse fácil correr atrás. É mais fácil falar. Pimenta nos
olhos dos outros é refresco. Ninguém compreendia a sua timidez excessiva.
Começou a boicotar também o
cantor que gostava, ao descobrir que ele era sogro de uma ex-colega, da
panelinha do Agenor. Depois a novela que tanto gostava. Soube que a nora deste
cantor entrou no meio da história, como atriz.
A vontade de cancelar a TV por
assinatura foi grande. Descobrira que a ex-colega de pós-graduação mais próxima
- e que o boicotara no final do curso - estava trabalhando lá como repórter de
vídeo. Para evitar outra bronca da mãe, deixou quieto. Nem tirou o canal de
notícias do pacote. Simplesmente parou de assistir a telejornais, inclusive os
da televisão aberta.
Quando os pais, a irmã e o
cunhado entravam na sala perto dele, Benvindo saía para não assistir aos
jornais. Só voltava depois que acabava a novela das nove, pois era nesta que
trabalhava a sua ex-colega, a nora do seu ex-cantor preferido.
Seu comportamento já começava a
preocupar a família. Benvindo passou a evitar as festas de aniversário familiares.
Boicotava a felicidade dos parentes. Até a da própria irmã. E por duas vezes. A
moça ficou aborrecida, sentimento logo substituído pela preocupação, seguida de
uma bronca.
— Você está se comportando como
um retardado!
— Não me enche o saco! Eu não
quero ver jornal e pronto! Você também não vê!
— Mas eu não vejo porque não
tenho tempo! Você é jornalista!
— Não sou mais! Não me considero
mais jornalista! Cansei dessa profissão hipócrita! Quer liberdade de expressão,
mas só fala o que lhe interessa. Critica o preconceito dos outros, mas esnoba
quem está abaixo deles! Jornalistas só querem saber de gente que os eleva, que
os bajula! Que puxa os seus sacos! Mas eu não vou mais bajular ninguém.
Jornalista pra mim agora é lixo!
— Então por que fez jornalismo, então?
— Porque eu queria trabalhar em
revistas de carro.
— Por que não procurou emprego
nelas, então?
— Porque estão todas em São Paulo
e não quero me mudar pra lá.
De fato, Benvindo também odiava
São Paulo. Não o lugar, nem os paulistas. Mas a mania dos governantes, da
sociedade e da mídia de concentrar tudo lá. Estava farto de ouvir que era a
cidade mais rica, mais importante do país, o motor do Brasil. Para ele, era
tudo desculpa de quem não tem o poder para reagir.
Já boicotava telejornais que
rasgavam seda demais de São Paulo. E também qualquer programa da única emissora
carioca do país produzido lá. Telejornais principalmente. Voltando à discussão
com a irmã, ela o indagou:
— Se você não quer mais ser
jornalista, nem publicitário, vai fazer o quê, então? Não sabe fazer nada. Por
que não trabalha na loja do papai?
— Porque não gosto daquele lugar.
Realmente, Benvindo não gostava
de trabalhar na loja do próprio pai. Boicotava a própria fonte de sustento.
Tentou trabalhar lá, mas não se adaptou. Culpa da ausência paterna. Também
achava o lugar pobre, mal frequentado. Seu pai já tinha sido assaltado duas
vezes na estrada para lá e sofrido uma ameaça de sequestro. Além da proximidade
com a cidade onde moravam a ex-colega de pós-graduação mais próxima que estava
trabalhando na emissora de TV a cabo e o seu novo namorado, também da mesma
turma da pós e seu ex-amigo.
— Quero ser roteirista agora. Ou
trabalhar como produtor. Estou procurando emprego para isso. E também quero
relançar o meu livro, que foi boicotado por aquela editora vagabunda.
— Está tentando, mas não vai
conseguir. Você não está se informando. Encerrou a irmã.
Milagrosamente, Benvindo conseguiu que um
diretor de teatro encenasse um dos seus contos. O melhor deles. Ficaria rico e
conquistaria a tão sonhada independência financeira e familiar. Iludiu-se.
Decepcionou-se.
A atriz escolhida para ser a
protagonista da peça foi justamente a sua ex-colega de faculdade, a tal nora.
Ou melhor, ex-nora do seu ex-cantor favorito. Ela era muito amiga do produtor e
diretor da peça. Por isso, este se recusou a tirar a moça do elenco. Era ela ou
não adaptava. A peça não saiu do papel. Benvindo passou a boicotar os trabalhos
do diretor. Também perdeu três oportunidades por causa da sua desinformação.
—Meu filho, você está ficando
doente! Censurou o pai. — Não está vendo mais jornal, não está mais lendo
jornal. Até os seus livros você está boicotando! Eu vou morrer e vou te deixar
à míngua. Não quer fazer um concurso público. Assim eu vou te deserdar.
— Estou me informando pela internet.
Respondeu.
Estava. Benvindo passou a
boicotar a grande rede também. Até os seus sites de automóveis favoritos
passaram a ser boicotados. Abandonou os próprios blogs. Cancelou todas as suas
contas nas redes sociais.
Os livros foram abandonados porque Benvindo se cansou
de dar público a editora e autor que o esnobavam.
Cada vez mais isolado, o pai
tentou colocar o filho no psiquiatra. Benvindo já tinha se tornado um
bobo. Mesmo assim, o filho não aceitou.
Estava cansado de gastar dinheiro com falsos especialistas que ficavam cada vez
mais ricos e esnobes. Foi internado. Ouviu que ele se boicotava a si próprio.
Um dia, boicotou a própria vida. Se negou a ficar no céu quando encontrou sua ex-amiga
da pós-graduação, que trabalhava na emissora de TV a cabo. Ela padeceu por
causa de um câncer de mama. Na nova vida espiritual estava namorando Agenor. Benvindo
preferiu ir para o inferno. Mas brigou com o Diabo e ficou vagando pelo
purgatório.
0 Comentários