Ela sentou-se no peitoril da
janela arrumando seu vestido florido para que suas coxas não tocassem na
superfície fria. Acabara de sair do banho, se vestira, se penteara e seu corpo
ainda exalava o cheiro gostoso do sabonete. Um livro de Pablo Neruda na mão,
cujo braço se apoiava no joelho da perna que levantara para colocar o pé também
no peitoril. Seu polegar marcava a página em que havia parado a leitura, mas
seus olhos contemplavam a rua de pedras cinzas lá embaixo.
Deitou o livro na coxa e ergueu
os braços para amarrar seu cabelo com ele mesmo. As madeixas douradas tocavam
seu rosto suavemente, deixando no ar o cheiro confortante de si mesma. Sua
visão ainda fixa nas pedrinhas cinzas, disformes, que suportavam o peso de
tantas pessoas que passavam ali todos os dias.
Suspirou. Passou uma mão na
perna erguida, macia como seu próprio rosto, num gesto de carinho para si
mesma. Lá embaixo duas crianças corriam com uma sacola de pães ao redor da mãe.
Um senhor cruzava seu caminho com um carro de mão onde dispunha alguns buquês
de flores. Ofereceu à mulher, que recusou com um gesto de mão. Duas beatas
surgiram como corvos, subindo a rua em direção à igreja que ficava na outra
extremidade daquele quarteirão. Suas roupas pretas dançavam conduzidas pelo
vento e suas mãos enrugadas apertavam o vestido para que o mesmo vento não revelasse
suas vergonhas. Ela sorriu olhando de cima para aquela cena. “Quem se deteria a
ver o vento passar sua suave mão por debaixo do vestido daquelas duas
senhoras?”, ela pensou.
De repente bolhas de sabão
começaram a aparecer vindas do lado oposto da rua e ela virou um pouco a cabeça
para ver quem as produzia. A filha de sua vizinha, uma criança de uns oito
anos, com as bochechas mais protuberantes e rosadas que já vira, assoprava na
argola da qual saiam as bolhas. A cada soprada seus olhos brilhavam tanto
quanto as bolhas e ela sorria, como se isso deve mais vida à brevidade da
existência daquelas bolhas.
O choro de uma criança foi
ouvida subindo a rua, logo atrás das duas beatas. O pai segurava o menino de
cabelos dourados que abria a boca como se com isso pudesse engolir o mundo. O
homem até tentava, meio sem jeito, acalmar o filho, mas o menino insistia em
sua revolta sabe-se lá pelo que. Foi quando uma das bolhas tocou e morreu bem
na ponta do nariz do menino que o choro cessou. Em seu lugar uma gargalhada que
só as crianças conseguem produzir ecoou na pequena rua, arrancando sorrisos dos
transeuntes e das pessoas que olhavam das janelas ou das portas onde estavam. O
menino estendeu seus braços para estourar mais bolhas e, para alegria do pai,
ele esqueceu seu choro.
Ela conhecia muito bem o pai do
menino. Era seu vizinho de frente e alvo de seus mais desejosos olhares. Toda
manhã ele saia bem cedo para o trabalho, mas não sem ser vigiado por ela, que
acordava mais cedo só para vê-lo. Era um misto de alegria e tristeza, pois
aqueles lábios bem desenhados, que ela ansiava tanto ter colados nos seus, era
sempre maculado pelos lábios de sua esposa. A alegria que ela sentia ao vê-lo
sair pela porta, colocar o chapéu em seus cabelos grisalhos, e olhar para cima
para lhe dar bom dia, logo passava e dava lugar para o ódio que a consumia por
completo quando a mulher dele também saia pela porta, entregava sua maleta e
lhe dava um beijo apaixonado. Todo o seu corpo tremia ao ver aquela cena e
sempre, depois disso, saia bruscamente do peitoril da janela e não se
reconhecia. Andava pela casa para lá e para cá, murmurando maldições,
prometendo uma vingança incompreendida, batendo nas paredes como se essas
superfícies que a ouviam tivessem alguma culpa. Ficava nesse ritual até se
acalmar e ler alguma coisa.
Quando o relógio batia seis
horas da noite ela corria para o peitoril de novo, pois seu “amado” estava
regressando do trabalho. O sol ainda lançava seus sonolentos raios sobre metade
da rua. Ela ficava sentada olhando para baixo, os cabelos dourados caindo
delicadamente sobre os ombros, iluminados pela moribunda luz do crepúsculo,
numa esperança de que, ao olhá-la ele se apaixonasse por aquela visão
angelical. Mordia o lábio inferior cada vez que ele surgia na rua.e o olhava
fixamente até que ele lhe sorrisse e pronunciasse seu nome. “Boa noite,
Isabela”. Aquelas palavras invadiam sua caixa craniana como água na garganta de
um sedento no deserto. Seu sorriso abria-se de uma orelha a outra e tudo o que
ela podia fazer, na ebulição dos sentimentos que faziam arrepiar tudo aquilo
que a cobria, era acenar com a mão enquanto ele entrava na casa. Aquilo faria
com que ela dormisse tranquila, pelo menos até lembrar que lá dentro estava a
sua rival.
Fim de semana ele sempre saia para
passear com o filho, enquanto a mulher ficava em casa cuidando para uma reunião
de mães que era marcada todo sábado em sua casa. Isabela abominava aquilo. Se
fosse ela jamais deixaria aquele homem para ficar rodeada de mulheres que
apenas reclamariam de suas medíocres vidas, de seus medíocres maridos e
consequentemente dos demônios que elas chamavam de filhos.
Naquele sábado não foi
diferente. Ele saiu com o filho sob a vigilância de Isabela. Um certo ciúme lhe
despertava também ao ver a criança nos braços do pai. Mas ele logo passava
quando o sorriso dele lhe dava o bom dia. Geralmente ele voltava ao meio dia,
quando as mulheres já haviam ido embora e o almoço já vertia seu cheiro pela
rua. Uma hora antes dele voltar Isabela, que já estava no peitoril lendo alguns
poemas de Pablo Neruda, viu a mulher de seu “amado” sair de casa e vir na sua
direção. Seu coração acelerou quando sua rival lhe dirigiu a palavra. Faíscas
saltavam de seus olhos e um nó se formou em sua garganta.
- Bom dia, Isabela, você poderia
fazer o favor de me emprestar um pouco de cominho? O meu acabou e o Alexandre
adora...
Cada palavra que a mulher
proferia era como um punhal atravessando o peito de Isabela. E quando ouviu o
nome de seu “amado” sendo maculado pelos lábios daquela mulher foi como se
tivessem tirado o punhal de uma só vez. Isabela sorriu num esforço titânico de
apaziguar sua ira.
- Claro. Espera que eu vou
descer e abrir a porta.
A mulher sorriu e aguardou...
Tendo passado uma hora depois
desse acontecimento as crianças surgiram, o cheiro de pão recém saído do forno
passeou pela rua, as beatas caminhavam devagar para confessar seus pecados, as
bolhas de sabão dançavam em sua brevidade para sua iminente morte e Alexandre
voltava para casa com o filho. Sorrindo por causa do choro que cessara ele
ergueu os olhos, como de costume, e cumprimentou Isabela. Caminhou em direção à
sua casa, abriu a porta e entrou com o filho. Lá esperava desfrutar do almoço
que sua mulher preparara. Esperava descansar de sua semana de trabalho.
Esperava aproveitar de sua família em conversas, risadas e carinhos. Mas não
naquele dia.
Isabela ainda olhava para a
porta que ele fechou atrás de si, mas sua atenção foi desviada por uma bolha de
sabão que subia em sua direção, levada pelo vento. A bolha pairou na mesma
altura dos olhos de Isabela, como se a encarasse. Então uma lufada de ar fez
a bolha entrar pela janela e flutuar por seu quarto. Ela morreu na testa da
mulher de Alexandre, cujo corpo estava estirado na cama. Os olhos sem vida
olhavam para os de Isabela. Os negros cabelos estavam tingidos pelo viscoso e
vermelho líquido que jorrava de sua têmpora esquerda, cuja abertura fora feita
pela grande faca que era usada para preparar o peixe e ainda estava encravada
em seu crânio. Isabela sorriu.
Na casa da frente o choro da
criança recomeçou. Dessa vez se sabia o motivo. O filho procurava a mãe. Isabela
pegou o livro do colo e começou a ler, mas o choro começava a incomodá-la. Impaciente,
fechou o livro e o colocou no colo novamente. Apoiou o queixo na mão e ficou
olhando para a casa da frente. Em alguns segundos o incomodo e a paciência
passaram a dar lugar à uma certa alegria, algo que ela julgou beirar a
compaixão, misericórdia. Ela sorriu e sussurrou “Calma, criança. Amanhã te levo
para o mesmo lugar que sua mãe está.”
2 Comentários
Muito bom, de verdade.