Gustavo do Carmo
Judas
teve uma infância difícil. Não por causa da pobreza, pois ele sempre estudou em
escola particular, vestiu roupas novas de marca e teve muito carinho. Dos avós.
Porque os pais ele perdeu precocemente.
A sua dura vida era por causa do seu físico
franzino e, principalmente, do seu nome. Servia de chacota para os colegas em
época de semana santa. Os amigos faziam questão de antecipar a Malhação de
Judas para a quarta-feira, já que na quinta não havia aula. Cobriam-no de
piadas e tapas na cabeça. Terminavam a malhação jogando o coitado na caçamba de
lixo. O menino chegava em casa tão sujo
e humilhado, que na Páscoa nem tinha prazer de comer os ovos de chocolate que
ganhava da avó. Se faltava na quarta para fugir da malhação, apanhava na
segunda-feira ou no primeiro dia que aparecesse.
Até os professores e secretários deixavam escapar algumas piadinhas. O avô já o
transferiu de escola duas vezes, mas não adiantava. Apanhava do mesmo jeito. Malhar
Judas era uma tradição.
Judas
foi batizado pelo pai. Este amava demais a esposa. Quando ela morreu no parto,
por complicações ocorridas na cesariana, Walmir ficou tão arrasado que culpou
Deus por ter matado a mulher da sua vida. Era muito religioso. Sentiu-se traído.
Por isso, batizou o filho com o nome do homem que traiu Jesus por algumas
moedas. Só não acrescentou o Iscariotes para não chamar muita atenção. O
primeiro nome já era o suficiente para fazer da vida do pequeno Judas um
calvário.
Um
ano depois, Walmir descobriu mais duas traições. Sua amada esposa Madalena havia
lhe traído, antes de morrer, com o seu melhor amigo Joélson, que era como um
irmão. Ficou tão deprimido que se enforcou como Judas. O Iscariotes.
Aos
dezessete anos, cansado de tantas humilhações físicas e morais, Judas decidiu
entrar em uma academia para ganhar corpo. Seu primeiro dia foi num sábado de
Aleluia. Chegou às sete horas da manhã. Fez mil flexões. Dois mil polichinelos.
Só para aquecer. O instrutor havia passado apenas cinqüenta de cada. Judas
insistiu para fazer cem.
Como
tinha se esforçado além da conta, o instrutor passou apenas dez exercícios no
aparelho de musculação. Judas fez cem. Levou uma sonora bronca do professor.
Judas se justificou confessando todo o seu sofrimento de infância. O professor
foi solidário, mas precisava alertar sobre os limites do corpo. Judas
compreendeu. Mas continuou fazendo em excesso, escondido do instrutor.
Judas
ingressou na faculdade de Educação Física. Ganhou corpo depois de um ano de
musculação. Mas não o suficiente para deixar de ser humilhado pelos alunos
veteranos da faculdade. Na quarta-feira, antevéspera da sexta-feira santa e
último dia de aula, os colegas do campus, mais musculosos do que ele,
anteciparam a Malhação de Judas no trote da universidade. Pintaram, jogaram
cola, café, ovos e leite e deram alguns socos e pontapés na barriga.
Chegou
em casa, como sempre, machucado, sujo e humilhado. Já adulto, só ganhava um ovo
de Páscoa dos avós. Mas comia apenas para não desfeitear o carinho que tinha
por eles. O chocolate para Judas sempre teve gosto de sangue.
Judas
por pouco não abandonou a faculdade. Foi convencido a ficar por um colega
recém-entrosado e pelos avós. Mas deixou de ser bonzinho para os outros. Jurou
vingança contra os seus agressores.
Malhou mais. E passou a tomar anabolizantes.
Seus músculos cresceram brutalmente. Parou quando ficou satisfeito com o
resultado. Entrou na escola de boxe. Treinou com vontade. Lembrava dos seus
algozes quando batia no saco de pancadas. Arrebentou uns quatro.
Quatro
também foram os sparrings
arrebentados por Judas. Um teve traumatismo craniano, mesmo com capacete.
Felizmente foi leve. Judas foi convidado por um empresário para lutar
profissionalmente.
Nocauteou
o adversário em sua primeira luta no clube do seu bairro. Em apenas cinco
segundos. A segunda luta já foi no Maracanãzinho, como preliminar da luta de
defesa do campeão brasileiro. Nocaute técnico em trinta segundos no primeiro
assalto. No mesmo ginásio, já valendo o cinturão nacional, o resultado se
repetiu em menos tempo: vinte segundos. De quebra, acumulou o título
sul-americano. E por falar em quebra, o cearense que o enfrentou levou quinze
pontos no supercílio.
Seis
meses depois, viajou a Punta Del Este para defender o campeonato
continental. Em dez segundos, o
argentino que o desafiou deixou o ringue direto para o hospital. Judas voltou
para o Brasil como um herói e celebridade.
Aceitou
uma proposta de cinco milhões de dólares para disputar o título mundial dos
pesos pesados em Las Vegas. Judas
ia enfrentar o mito do esporte que lhe deu as suas maiores oportunidades.
Em
apenas dois anos, desde que se matriculou na academia para ganhar músculo,
cansado de tantas humilhações que sofria no colégio às vésperas do sábado de Aleluia,
todos os anos, simplesmente por causa do seu nome, Judas se transformou no
maior nome do boxe brasileiro em todos os tempos, mesmo sem ainda conquistar um
título mundial, que era questão de tempo.
O
tal mito era um cubano, vinte quilos mais pesado do que ele. Uma montanha.
Montanha não. Uma cordilheira, que aliás, era o apelido do pugilista. Tinha o
rosto tão inchado quanto os músculos do seu corpo. Judas parecia o franzino dos
seus tempos de colégio perto dele.
A
luta ocorreu num sábado de Aleluia, hora dos Estados Unidos, pois já era
madrugada de domingo de Páscoa no Brasil. Acompanhado de belas garotas de maiô
da organização, Judas entrou com roupão amarelo brilhoso, com desenhos alusivos
à nossa bandeira. Golpeava o ar a
qualquer momento. Ao ser anunciado, o nome Judas Santos não foi tão ovacionado
como o de Carlos “Cordillera” Miguelez. Este sim foi aplaudido de pé.
Soou
o primeiro gongo que anunciava o início da luta. Os adversários ficaram se
estudando. Judas percebeu que estudou demais ao levar o primeiro cruzado de
direita do oponente. Ainda sentia o gosto enferrujado do sangue latejando em
seu protetor dental quando levou o segundo. O terceiro levou no olho. Em quinze
segundos levou uma seqüência de golpes ininterruptos que o treinador do
brasileiro foi obrigado a jogar a toalha. Judas perdeu a luta, não conquistou o
cinturão mundial e ainda viu a sua derrota ser chamada de A Malhação de Judas.
Na
semana seguinte, ficou sabendo que foram encontrados traços de anabolizante no
exame antidoping. Perdeu todos os cinturões que tinha. E a credibilidade. A
imprensa passou a malhá-lo. E já não era mais sábado de Aleluia.
0 Comentários