Me chamo Norma Célia. Sou professora de ensino fundamental. Dou aula de geografia e história para alunos da oitava série. Preparo as aulas de véspera, todos os dias, depois que eu chego da escola. Trabalho em uma pequena instituição particular chamada João Paulo II.
Logo que eu
termino de preparar as aulas resumo tudo em fichas de papel, daquelas pautadas.
Organizo tudo em ordem alfabética, de acordo com o assunto. Faço ficha de tudo:
temas, bibliografia, personagens, exercícios, entre outros. Guardo tudo numa
caixa de acrílico com chave e a protejo com uma frasqueira de couro.
Aprendi a
fichar com a minha mãe, que era bibliotecária. Ela ainda está viva, graças a
Deus! Só que está aposentada há quase trinta anos e bem velhinha.
Num desses
dias de aula, estava lecionando em uma das escolas quando um aluno franzino, de
óculos, veio me procurar para denunciar um grupo de colegas que o humilhava. Não
era a primeira vez que ele reclamava. E também não era o primeiro aluno. Um
menino gordo e outro afeminado já tinham feito as mesmas acusações.
Mandei que
eles falassem com a diretora. Os três disseram que têm medo dela, pois era
muito rigorosa e não tinham coragem para entregá-los. Pelo contrário. Tinham
medo de represálias. Não que eu não quisesse ajudá-los, os coitados só confiavam
em mim. Só que eu não me dou bem com a diretora Laura.
E esta parece que é muito amiga do pai de um dos agressores. Nunca iria fazer
nada. De qualquer forma, anotei a queixa nas minhas fichas.
Sou tão
dedicada a elas que, às vezes, me sinto neurótica. E os alunos já perceberam
isso. Tanto que alguns deles adoram me provocar. Deram para bagunçar as minhas
queridas fichas.
Aff! Odeio
quando tiram uma única ficha do lugar. Neste caso eu só fico puta e coloco na
ordem. Mas quando bagunçam o arquivo todo, prendo todo mundo na sala na hora da
saída ou do recreio, até que o culpado se apresente. Dependendo do aluno eu até
não faço nada, a não ser dar um duradouro sermão. Não mando ele arrumar porque
elas contêm algumas informações pessoais e gabaritos de provas. Não dou esse
mole. Ou dou?
Tentei manter
a calma até o dia em que o meu fichário sumiu. Meu mundo caiu. Toda a minha
vida estava naquelas fichas. Entrei em depressão. Faltei pela primeira vez na
minha carreira de professora. Consegui que a diretora Laura ficasse do meu lado
e me ajudasse a procurar o fichário e punir os culpados.
Uma semana
depois, a minha razão de viver reapareceu. Destruída. O fichário de couro
estava sujo de lama. Metade das fichas estava rasgada. A outra metade,
queimada. Se o meu mundo tinha caído quando elas sumiram, agora eu senti o
impacto.
Fiquei um mês
em casa, sem sequer me levantar da cama. Foi só quando vi a minha mãe,
fraquinha, tentando me ajudar e me dar comida na boca é que eu acordei e juntei
forças. Me deu pena dela me olhar com pena. Eu que precisava cuidar dela e não
ela de mim.
Fui até ao
escritório do meu falecido pai. Revirei as gavetas do armário dele e encontrei
uma caixa de couro. Me lembrava até a caixa onde eu guardava as minhas fichas.
Depois de
chutar e acertar de terceira a senha de metal, abri e encontrei um revolver de cinquenta anos, que pertencia ao meu bisavô. As balas ainda estavam lá. Papai as tinha comprado uma semana antes de morrer.
Restava saber
se ainda funcionavam depois de vinte anos. Como eu ia testar? Se eu atirasse
aqui em casa ia assustar a minha mãezinha. Decidi atirar sem testar, mesmo. Se
falhasse e ninguém percebesse, talvez o meu ódio esfriasse.
Pela manhã,
fui normalmente dar aula. Sem as minhas fichas, que ainda estavam sendo
refeitas. Todos os meus alunos me aplaudiram. Ficaram felizes com a minha
volta. Ouvi as mesmas queixas de bullying. Orientei os alunos mais tímidos. Dei
bronca nas algazarras e expus as matérias.
Fiquei ouvindo
a conversa dos baderneiros, nos intervalos, para saber onde eles iriam passar a
noite. Era o início do meu plano. Tenho certeza de que foram eles que
destruíram as minhas fichas.
Antes de
começar a aula da oitava série, entrei escondida na secretaria e vasculhei as
fichas dos alunos. Queria descobrir onde os tais suspeitos moravam. A João
Paulo II tinha por norma não fornecer endereços de alunos para terceiros. Nem
para os professores.
Já podia me
sentir vingada ao mexer no arquivo alheio. Mas eu precisava me vingar dos
alunos que roubaram as minhas fichas. Não da escola.
Descobri o
nome dos alunos. Um se chamava Anderson Natalino de Jesus, morava no Méier. O
segundo, Emílio Andrade Motta, da Barra da Tijuca. E o terceiro, Aparecido
Nascimento do Carmo, residente em Duque de Caxias. Deu tempo de tirar Xerox de
todas as matrículas antes de ouvir o ruído de alguém entrando na antessala da
secretaria. Saí com a sensação de que esqueci alguma coisa.
Dei aula
normalmente até o final do expediente da tarde. Liguei pra minha mãe avisando
que iria chegar tarde em casa. Disse que ia sair com uns amigos. Minha mãe
disse apenas “Vai com Deus, minha filha! Se divirta! Você está precisando.”
Entrei no meu
carro popular de segunda mão e comecei a seguir o Emílio, que foi para o ponto
de ônibus. A escola fica na Tijuca. Tão logo ele pegou o ônibus, engatei a
primeira e o segui.
Com tanta
volta que o ônibus deu mais os engarrafamentos da hora do rush, já estava
escuro quando chegamos à Barra. Ele saltou num ponto deserto. E caminhou na
direção do meu carro. Tive que me esconder quando ele passou por mim. Ainda bem
que ele não me reconheceu.
Fiz uma
bandalha com o meu carro para mudar de direção sem perder tempo com aquele
retorno enorme. Segui o jovem. Era o momento certo para atirar. Virei-me para
pegar a arma.
Dei um tiro
certeiro a três metros de distância. Varou o pescoço. O adolescente de camisa
branca caiu abatido como um cervo. Fugi imediatamente, mas saí sem acelerar
para não chamar atenção. Dei graças a Deus por ninguém ter me visto.
Segui o meu
caminho até o próximo destino. Onde? Puta merda! Lembrei o que eu tinha
esquecido: a ficha dos elementos. Ainda bem que eu lembrei que o Aparecido
morava em Duque de Caxias.
Fui até lá.
Meia hora depois, que sorte, vi o rapaz num churrasquinho numa praça da cidade.
Estava movimentada, mas o local onde eu estacionei o carro estava deserto. Deu
pra sair do veículo e ter a liberdade de descarregar a minha raiva sem ser percebida.
Dei cinco tiros. Vi dois acertarem a cabeça e o peito do Aparecido. Fugi
novamente, sem acelerar. Todos acharam que foi bala perdida.
Cheguei em
casa no Méier e encontrei mamãe toda ensangüentada, parada na porta. Me
desesperei. Corri para abraçá-la e perguntar:
— Mãe, o que
houve?
— Dei cinco
tiros num filho da puta que ficou zombando das suas fichas. Isso foi pela sua
honra e pra esse vagabundo aprender que ninguém debocha de uma bibliotecária.
À frente dela,
sobre uma poça de sangue, estava o corpo do Anderson, o último baderneiro que
eu ia matar. Mamãe usou outra arma de papai, uma pistola Magnum 44. Sujas de
pólvora e sangue, abraçamos emocionadas - eu agradecida pelo gesto maternal –
antes de sermos algemadas.
Além da
brutalidade do crime, fomos condenadas porque matamos os alunos errados. Foram
as vítimas de bullying: o menino gordo, o gay e o CDF quem destruíram as
fichas. Descoberta pela minha impressão digital nas fichas esquecidas e por
testemunhas em Duque de Caxias, peguei dezenove anos de cadeia. Mamãe, mesmo
pega em flagrante, pelos seus noventa anos, apenas doze.
Ela ficou num
asilo. Eu no Talavera Bruce, onde trabalhei como bibliotecária para reduzir a
pena. Depois de ser solta e recomeçar a minha carreira de professora, troquei
as fichas de organização de papel por um tablet. Até que um dia ele sumiu.
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