1 Real de Pão


Nos últimos anos tenho sido acometido por um cansaço que não é físico e chega a ser até mais que mental. Como se esse cansaço orbitasse o meu corpo, como se ele tivesse criado ramificações se expandindo de minha mente, espalhando-se em sinapses invisíveis flutuando ao meu redor.
E é por isso que tudo me cansa. Porque eu estou atento a cada detalhe, mesmo os mais simples, os mais ordinários. Nada me escapa e por isso esse peso, esse cansaço que me orbita, essa sensação constante de que morrerei esmagado pelo peso de minha própria consciência das coisas.
Por exemplo: são apenas 47 passos da minha casa até a padaria, mas eu posso sentir a gota de suor brotar entre os pelos de minha têmpora e deslizar até o meu queixo, esse líquido pegajoso e frio que faz seu caminho desde seu nascimento lá no alto até sua morte ao se lançar de modo suicida, do meu queixo ao chão. E no chão, cada passo meu me mostra o ar que é deslocado por minhas pernas que mecanicamente se movimentam para frente, pelos meus pés que batem no chão e levantam corpúsculos de infindáveis coisas feitas de átomos.
Tive um professor uma vez que falava sobre a observação dos escritores. Quando tempo eles levaram para aprender de fato a observar. Hesse, Dostoiévski, a importância que eles davam à observação e não somente a observação das coisas belas, pois escrever também é enfiar a mão na merda para encontrar alguma joia.
A sensação de vertigem de novo.
Na padaria algumas mesas estão ocupadas por apenas uma única pessoa, as outras estão vazias. Me pergunto se na verdade não estarão mesmo todas, de fato, vazias. Pessoas solitárias bebendo seu café, seu café com leite, seu suco de laranja, para molhar pão fresco com manteiga, ou com ovo e presunto, queijo. O cheiro que me rodeia é justamente esse, café com queijo e presunto, como daquelas barraquinhas de fast-food abertas logo cedo de manhã. Tudo aqui evapora, solta fumaça, e eu contemplo isso através da maciez líquida de meus olhos.
Peço um carioca e um misto quente e sento na mesa esperando. No lado esquerdo tem a fila do caixa, já grande até, mas o que me chama a atenção é uma mãe. Seu corpo demasiado branco e magro se enverga uns graus para trás porque em um braço segura uma criança que suga um de seus seios. Seu outro braço serve de suporte para duas bolsas, uma para seus objetos pessoais e outra para os objetos da criança de colo. No fim de seu braço, agarrado à sua mão, está outra criança, um garoto, aparentando uns 2 ou 3 anos. Essa criança puxa a mão de sua mãe, que puxa a dele, ambos parecendo brincar de algum cabo de guerra pessoal. O garotinho, na verdade, tem feições de garotinha e usa uma camiseta do Nirvana. Há um filete de catarro seco abaixo de sua narina esquerda. Ele se mexe sem parar, como esses brinquedos que a gente dava corda, só que ele não para nunca.
Essa mulher, ela não aparenta ter os filhos, as crianças parecem mais como partes removíveis dela, como encaixes. Elas fazem parte de seu corpo, mas podem ser destacadas, recolocadas em outro lugar e sei disso porque agora o garotinho escala o braço da mãe, entre as duas bolsas, com seus pezinhos apoiados na coxa dela e encaixa as duas pernas gordinhas na cintura da mulher.
A mulher, ela parece uma peça de Lego.
Observo a mulher. Ora, todos estamos sendo observados. Nesse momento você que está me observando observar a mulher que observa com uma linha fina formada na boca que a fila parece não andar, enquanto o garotinho, num movimento que eu mesmo não arriscaria, enrosca as perninhas com força na cintura da mãe, solta os braços e vai envergando as costas até olhar tudo de cabeça para baixo.
Há um instinto em mim que eu mesmo desconhecia de preservação pela espécie que quase me faz levantar e pegar essa criança que, para mim, está correndo risco de vida e a mãe me parece muito irresponsável, mas não é nada disso que eu estou pensando. O garoto faz parte da mulher, ele é um tentáculo dela que se contorce em uma brincadeira inocente. Apesar de poder ser desencaixado da mulher, ambos continuam com a mesma consciência, então é como se a mãe soubesse de todos os movimentos que ele está fazendo, porque basicamente é ela que os faz, sendo assim, a criança não corre perigo algum.
Sandra chega com meu café e o misto quente. Sandra é a atendente que sempre vem me perguntar como está a Tapioca, minha gata branca que uma vez eu lhe mostrei a foto e ela adorou. Bem, Tapioca morreu há duas semanas e eu simplesmente não tive coragem de contar a verdade para a Sandra. Eu poderia dramatizar a coisa toda, porque Tapioca morreu de uma maneira bastante estúpida. Mas agora estou há duas semanas mantendo viva a memória de uma gata cujo corpo já deve estar servindo de banquete para a terceira ou quarta leva de convidados das larvas debaixo da terra. Então digo para a sorridente Sandra que sim, a Tapioca está bem e ela me deixa com minha comida levando consigo um sorriso de alegria por saber que o diabo da fantasma da minha gata está bem.
Quando olho para a fila novamente, ela andou. A mulher espera apenas um senhor terminar de ser atendido para então ser a sua vez. A criança que mamava já está satisfeita e seu olhar de bolotinhas negras passa pelo ombro e pelas costas da mãe e vê o irmão agarrado a uma das pernas magras da mulher, como um filhote de bicho-preguiça se agarra ao tronco de uma árvore.
O senhor vai embora e ela dá um passo incerto para a frente, sua perna direita com um peso extra, dura.
“Bom dia. 1 real de pão, por favor.”
E é apenas isso. Essa mulher esperou esse tempo todo para pegar apenas 7 pães em uma sacola de papel. E é esse tipo de coisa que me cansa. Todos esses detalhes sórdidos, todos esses acontecimentos que funcionam dentro de um propósito, um objetivo, mas que no fundo, sob a pele fina de sua existência, no interior úmido e ecoante de si mesmos, não fazem sentido algum.
A criança no colo começa a puxar os cabelos da mãe. Os dedinhos gordos e pequenos emaranhando as mechas loiras vão esticando, puxando, com força, a força que uma criança pequena pode ter. Mas a mulher sequer pisca. Ela pega a sacola de papel com seu 1 real de pão, não pede para o garoto desagarrar de sua perna, não pede que a garotinha pare de querer lhe arrancar os cabelos. Essa mulher se move com dificuldade com uma criança adesivada em sua perna e outra lhe ceifando a cabeça, as bolsas chacoalhando em um braço, junto da sacola de pães. Essa mulher é uma multidão ambulante, um corpo em constante processo de desenvolvimento. A chupeta da criança cai no chão e não há necessidade de que alguém a pegue porque todo o maquinário que essa mulher é se desloca para se abaixar e pegar com uma agilidade que nem eu, nos meus anos áureos de juventude, tinha. Da bolsa de pertences da criança ela tira um lenço onde embrulha a chupeta caída, pega outra de outra cor de dentro da bolsa e soca na boca salivante da menininha, que ainda tem fios de cabelos presos e esticados numa das mãos.
E essa mulher atravessa a porta da padaria para a rua, para a sua casa, para o seu mundo.
Não penso em minha mãe porque ela não saiu do hospital onde nasci viva. Foi uma troca. Eu vivi, ela morreu. Ciclo sem fim. Nem penso em minha esposa, porque não sou casado. Penso somente nessa mulher, esse espécime ímpar do ser humano feminino.
Sandra volta com uma garrafa de café para me perguntar se quero mais. A voz dela me desperta de meus devaneios. O cheiro de café fresco unido ao sabonete de Sandra é um cheiro já familiar. Ela está parada na minha frente esperando minha resposta. Para mim, Sandra só existe aqui. Ela não tem casa, não tem família, não tem passado ou futuro. No roteiro da minha vida, ela aparece sempre como a coadjuvante, surgindo num certo horário da minha vida e desaparecendo depois para reaparecer apenas no dia seguinte. Fora da minha visão, Sandra desaparece como fumaça. Pode parecer cruel, mas ela deve pensar a mesma coisa de mim.
Ela ainda está parada esperando minha resposta. Blusa branca, calça preta com um avental preto em volta da cintura. Os cabelos presos por uma redinha negra. Sandra é uma mulher frágil. Não lembro de nenhum movimento que ela já tenha feito que não seja acompanhado de um estalo. E apesar de tudo, de toda a insignificância aparente que Sandra tenha na minha história, ela sempre pergunta como está minha gata. É a versão dela para o “Tudo bem?”.
E ela ainda espera minha resposta.
“Sandra… a Tapioca morreu.”
A mulher começou a murchar bem na minha frente. Perdendo o brilho, se tornando fosca, diluída em sua própria cor que já desaparecia.
Eu nem ia falar nada, mas saiu. Sandra demonstra profunda tristeza, mas eu já não sei se por causa da morte de Tapioca ou por minha mentira.
“Pois é, foi há duas semanas. Eu que não tive coragem de te contar. Mas também, eu sempre dizia pra aquela gata doida pra não dormir debaixo do carro. E toda vez antes de sair eu olho se ela está lá. Nem tem como não ver aquela enorme bola de pelos branca. Mas aí, eu não sei como, ela conseguiu se enfiar entre a roda e cobertura,então não tinha como eu ver. Só depois que ouvi o miado alto e saí do carro e vi uma pasta de sangue e pelos que percebi o que tinha acontecido...”
Bem, agora eu estou falando só. Aparentemente Sandra correu para o banheiro para vomitar.
E correu junto com a garrafa de café.
Estou ainda mais cansaço. E agora sem café. A nuvem que me orbita se avoluma e minhas pernas pesam, meu corpo inteiro parece desistir de qualquer alívio.
Outra atendente se aproxima com outra garrafa, seu sorriso de desculpas rasgando seu rosto ainda cheio de espinhas.
“Desculpe. Sandra não está se sentindo bem. Deseja mais alguma coisa?”
“Sim, por favor. café puro e uma… tapioca. Ahn… com goiabada no recheio, por favor.”

Hemerson Miranda

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