RABUGENTO



Conto de Gustavo do Carmo

Caminhava com a esposa, Mariana, na rua do bairro de subúrbio onde moravam. Como sequela de um acidente de automóvel aos 17 anos, se apoia mancando em uma bengala desde então.


O casal passava por uma loja de eletrodomésticos de renome que tocava, num moderno aparelho de som, em volume bem alto e quase quebrando as vidraças, um funk bem pesado, daqueles cantados por verdadeiros marginais, que ameaçavam:

“ VÔ TREPÁ! VÔ TREPÁ! VÔ TREPÁ PARA ASSALTÁ! VÔ SIM! VÔ SIM! VÔ MATÁ! VÔ MATÁ! VÔ MATÁ PARA ASSALTÁ! VÔ SIM! VÔ SIM!”

— Mas que absurdo! No meio da rua, uma loja conceituada tocar uma aberração dessas! O gerente tinha que ir preso e levar umas 500 chibatadas! Eu vou é reclamar com alguém.
— Ah, Astolfo, deixa pra lá! Não vai fazer escândalo!  Pediu Mariana, sem sucesso.
— Não! Não! Isso tem que parar. No meu tempo essas lojas tocavam MPB e em volume suportável.
Astolfo desobedeceu a esposa e, com a sua bengala, aproximou-se de uma vendedora, loura magrinha, falando alto em seu ouvido:
— VOCÊ PODERIA PARAR DE TOCAR ESSE FUNK INDECENTE, POR GENTILEZA?
— OI???
—VOCÊ PODERIA PARAR DE TOCAR ESSE FUNK INDECENTE, POR GENTILEZA?
— NÃO OUVI!
— PORRA! É POR ISSO QUE ESTÁ SURDA! VOCÊ PODERIA PARAR DE TOCAR ESSE FUNK INDECENTE, POR GENTILEZA?
— DESCULPA, SENHOR! MAS É ORDEM DO GERENTE! EU NÃO POSSO ABAIXAR!
— HEIN????
— DESCULPA, SENHOR! MAS É ORDEM DO GERENTE! EU NÃO POSSO ABAIXAR!
— AINDA NÃO OUVI!
— É ORDEM DO GERENTE, SENHOR! EU NÃO POSSO ABAIXAR!
— ENTÃO ME CHAME O GERENTE! ESSE LIXO NÃO PODE FICAR TOCANDO, AINDA MAIS NESTA ALTURA!

O gerente, um mulato gordo, apareceu sem ser chamado, provavelmente já percebendo a confusão que Astolfo aprontava. A loja inteira olhava e Mariana se envergonhava.  

— POIS NÃO!
— O SENHOR PODERIA, POR FAVOR, TIRAR ESSA POLUIÇÃO SONORA QUE VOCÊS CHAMAM DE MÚSICA E COLOCAR OUTRA MELHOR, DE PREFERÊNCIA BEM BAIXA! ASSIM NINGUÉM AGUENTA COMPRAR NESSA LOJA!
— EU NÃO VOU TIRAR NÃO! PRIMEIRO PORQUE VOCÊ ESTÁ PEDINDO SEM EDUCAÇÃO! SEGUNDO PORQUE O HIT DO MC CRUELZÃO E OS PYVETYS É O MAIOR SUCESSO! OLHA SÓ COMO ELA ESTÁ CHEIA E OLHANDO PRA VOCÊ! SE NÃO QUISER COMPRAR AQUI, O PROBLEMA É SEU!
— AH É! VOCÊ VAI VER ENTÃO! EU VOU RECLAMAR DESSA LOJA NA IMPRENSA E FAZER CAMPANHA PARA BOICOTAREM VOCÊS! MAS ANTES EU VOU ABAIXAR ESSA MERDA!

Caminhou do interior da loja até o som que ficava na porta e, demorando uns dez segundos para localizar o botão, abaixou o volume do cântico, quase deixando o aparelho mudo. Ouviu uma sonora vaia dos frequentadores da loja e dos camelôs que vendiam produtos piratas, alguns até roubados, como celulares. Foi puxado pelo braço por Mariana e os dois saíram da loja.

— PUTA QUE PARIU, ASTOLFO! VOCÊ TEM QUE ME FAZER PASSAR VERGONHA! NÃO ADIANTA RECLAMAR! A BAIXARIA CULTURAL JÁ ESTÁ IMPREGNADA NESSA GENTE DE BAIXO NÍVEL! E SE FIZER ALGUMA COISA, AINDA CORRE O RISCO DE SER PREJUDICADO!

Astolfo ouviu calado o sermão da esposa, embora um sentimento de revolta o corroesse por dentro. Estava se acalmando quando foi obrigado a ouvir, em volume menor, mas também alto, outra manifestação de mau gosto musical. Desta vez, um forró cantado por uma moça com sotaque nordestino:

“TÔ MOLHADINHA! MOLHADINHA! MOLHADINHA! VEM DANÇAR! VEM DANÇAR!“ 

Vinha de uma carroça de sorvete de fundo de quintal. Mais precisamente de uma caixa de som embaixo da caçamba que agora fazia o pregão do produto:
“SOOOORVETEEEE DELÍCIAAAAA! TRÊS BOLA DE QUALQUER SABOR POR DOIS REAAAL! DELÍÍCIAAAA! “

Parou horrorizado diante do sorveteiro - um senhor gordinho, de pele queimada de sol com bigode e também com sotaque nordestino, diferente da voz gravada do locutor - que o encarou e perguntou, sem desligar o som, que voltava a tocar o forró:

— Vai um sorvete aí, moço?
— NÃO, OBRIGADO. MAS O SENHOR PODERIA MUDAR ESSA MÚSICA E BAIXAR ESSE SOM, NÉ?
— Astolfo! Repreendeu Mariana.
— AH, MEU SENHOR! NÃO POSSO BAIXAR NÃO! É O MEU INSTRUMENTO DE TRABALHO. SÓ COM A MÚSICA DO CALCINHA DE RENDA DE CHICO QUE EU ESTOU VENDENDO BEM.
— Então, vê se aprende a falar português, né? Existe uma regra gramatical chamada concordância de número.

Irritada por mais um vexame provocado pelo marido, Mariana o puxou e disse para o sorveteiro educadamente.

— Ele não quer sorvete não. Muito obrigada! Tenha uma boa tarde!

Com Astolfo ela esbravejou:


— Porra, Astolfo! Vai me fazer passar vergonha de novo???? Já não basta o escândalo que você fez na loja de eletrodomésticos!?
— Mas alguém tem que tomar uma atitude contra essa baixaria que reina aqui no país. No meu tempo, vendedor de sorvete só tocava sininho e os sorvetes eram bons e não esse lixo vagabundo que fazem por aí. E ainda falavam português melhor, mesmo não tendo estudo.

Tomaram o caminho de volta para casa, não sem antes Astolfo discutir e quase sair na pancadaria com o auxiliar de uma van de transporte alternativo que, já não bastasse ter parado no meio da faixa de pedestres e soltar a mensagem gravada com o itinerário (uma favela) e uma buzina de relinche de cavalo com cantada barata, berrou bem no seu ouvido.

— PORRA! VAI GRITAR NO OUVIDO DA MÃE!
— VAI TOMAR NO C...!
— VAI VOCÊ, SEU CLANDESTINO!
— CLANDESTINO É A SUA MÃE, SEU FILHO DA PUTA! ESSA VAN É LEGALIZADA! 
— PRA GANHAR VOTO QUALQUER VAN PIRATA É LEGALIZADA, SEU ANIMAL!
— QUEM É ANIMAL?  VEM CÁ QUE EU VOU TE MOSTRAR QUEM É ANIMAL!
— É ANIMAL SIM! E NÃO BASTA SER CLANDESTINO, TEM QUE FAZER BANDALHA NO TRÂNSITO, PARANDO NO MEIO DA FAIXA DE PEDESTRE!

Já sem dirigir a palavra ao marido, Mariana o puxou e, muda, fingiu não ouvir Astolfo resmungar sobre todas as irregularidades do bairro, da cidade e do país durante o caminho inteiro, como dizer que antigamente havia bondes e reclamar da cena de sexo explícito homossexual entre dois moradores de rua.

***

Já em seu apartamento, Astolfo assistia à televisão com a esposa e os sogros. Antes deles chegarem, já tinha mudado de canal vinte vezes e reclamado de uma campanha beneficente pedindo doações para uma instituição de caridade para crianças carentes. Disse sozinho que não daria porque o dinheiro seria desviado e a miséria se perpetuaria com o combustível financeiro. Já na presença dos sogros, ficou indignado com o que viu em um programa de auditório: um concurso de pole dance infantil, com meninas e um menino vestindo (?) roupas justas e cavadas.

Mudou de canal imediatamente, para protesto indignado da sogra:

— Pôxa, Astolfo! Eu estava vendo!
— Ah, desculpa, Dona Marilda! Me admiro a senhora tão religiosa ficar vendo essa baixaria, esse desrespeito com as crianças. No nosso tempo, menina brincava de bonecas, meninos jogavam bola e participavam de programas infantis cantando boa música ou brincando de adivinhar para onde o coelhinho vai ou fazendo uma gincana saudável.
— Pode ver então os seus programas. Eu e o Geraldo já vamos.

Arrependido do gesto mal-educado com os sogros, de quem gostava tanto, Astolfo tentou se desculpar:

— Não, não. Me perdoa, Dona Marilda e seu Geraldo. Eu sei que eu estou errado. Ó! Voltei pro canal da baixaria para a senhora. Podem ver o programa de vocês. Eu vou trabalhar no meu quarto, com licença.
— Mas eu concordo com você, Astolfo. Os programas de hoje estão uma baixaria só. Estão insuportáveis. Colocar criança para fazer dança sensual no poste é um atentado contra a moral e os bons costumes. Disse, seu Geraldo, militar reformado, apoiando o genro, tentando quebrar o mau clima.
— Eu também não discordo de você, meu filho. Mas não tem nada para ver na televisão. Pode desligar.
— Não, não, não. Me perdoa mesmo. Pode ver o seu programa. Disse, quase se ajoelhando para se desculpar.

Abatido consigo mesmo por ter aborrecido os sogros, Astolfo se retirou da sala, com a sua bengala, sob o olhar revoltado de Mariana. A televisão continuou ligada.

No quarto, tentava se concentrar no artigo sobre poluição sonora que precisava entregar para uma revista, mas era incomodado por gritos estridentes de crianças que brincavam na portaria do prédio. O remorso que sentia pelos sogros já atrapalhava a sua concentração. Estressado, chegou à janela e gritou:

— EI, DÁ PRA VOCÊS CALAREM A BOCA AÍ???? ESTÃO PARECENDO MARITACAS! NO MEU TEMPO CRIANÇA BRINCAVA, MAS NÃO FAZIA TANTA ALGAZARRA!

Da sala, Mariana ouviu, já prestes a explodir, a mais uma reclamação do marido. Ficou quieta até ouvir o sinal sonoro de um caminhão em marcha a ré manobrando no hospital ao lado do prédio onde moravam, em seguida Astolfo gritar com o motorista e jogar um copo de vidro pela janela. Desabafou com os pais:


— Eu não aguento mais. Eu vou me separar do Astolfo. Se com trinta anos ele já tem cabelos brancos, anda de bengala e está se comportando como um velho gagá, imaginem quando chegar aos sessenta! 

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