Os deuses estão mortos


- Mas diz aí, por que você estava tão irritada com o Carlos?
- Ah, Joca... Na verdade sei lá, viu.
Ele tomou um gole da sua cerveja. Sorriu.
- Você sabe que ele é assim. A vida dele é essa. Na verdade a vida de nós três é essa. Tirando as suas viagens pelo mundo e às vezes em que eu sou contratado para matar alguém, a nossa vida é esse ócio gigantesco.
Ela deixou que as palavras de Joca entrassem em seu cérebro. Era verdade. Ali estavam os dois numa terça-feira, às duas da tarde, bebendo cerveja. O bar estava vazio. Além deles só o dono do bar e uns dois bêbados depressivos que frequentavam o lugar praticamente todos os dias.
- É, acho que sim.
Ficaram em silêncio. As cervejas acabaram e Joca foi até o balcão pegar mais duas. Quando voltou ele viu Joana escrevendo num guardanapo.
- O quê está fazendo?
- Ah, nada não – disse despreocupada.
- Deixa eu ver.
- Acho que não.
- Para com isso. O quê é?
- Só um poema idiota.
- Não deve ser tão idiota quanto você pensa. Sabe por quê?
- Não sei não. Por quê?
- Por que você, como uma poeta, está intoxicada com a ideia de que as pessoas não vão entender o que você tem como projeto literário.
- Puxa... Não sabia que você era capaz de ser tanto articulado.
- Cala a boca – disse Joca rindo.
Joana parou de escrever. Levantou um pouquinho o guardanapo e o leu. O leão tentou ler contra a luz, mas não conseguiu. Ela então entregou o papel a ele.
- Tó.

Eles ainda estão aí em algum lugar quase inexistentes

Os deuses estão mortos
Estão porque ninguém mais os veneram
Ninguém mais acredita que os seus mitos são reais
Uma nova geração está aí e eles vão definhando todos os dias um pouco mais
Sentem-se enganados
Deixados para trás
Num asilo
Apenas uns poucos excêntricos ainda os procuram pelas histórias que categorizam apenas como fábulas que pessoas primitivas contavam para encontrarem um lugar ao sol
Eles choram
Foram esquecidos
Ninguém se importa.

- Uau! – disse arregalando os olhos. – Incrível como você conseguiu escrever tanto com tão pouco espaço.
- Idiota.
Os dois riram. Ela pegou sua nova garrafa de cerveja do meio da mesa e tirou a tampa com a beirada da camiseta.
Tomou um gole.
- O que achou?
Joca demorou a responder. Parecia estar relendo o poema.
- Puxa. Como é que eu nunca vi esse talento antes?
- É que eu não sou de mostrar o que eu escrevo para qualquer um.
- Então isso quer dizer que até hoje eu era um qualquer um?
- Pode-se dizer que sim. Há, há.
- Então tá bom.
Ele ia devolver o guardanapo a ela. Ela colocou a palma da mão sobre o papel.
- Pode ficar com ele.
Joca o guardou no bolso do blazer surrado. Joana deu mais uma golada e disse seriamente.
- Não me importo nem com os deuses nem com os meus poemas.


Conto de Lucas Beça

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