A Partida


Por Hemerson Miranda



Ela já sabia que sua hora havia chegado, mas obviamente não poderia explicar como sabia disso. Desligou a tv, pegou sua bengala e começou a andar lentamente, conforme seu frágil corpo permitia, até o seu quarto.

A filha de uma de suas amigas passaria ali daqui à uma hora para lhe deixar uma encomenda, mas não adiantaria mais. Ela já não poderia receber. Depois de algum tempo conseguiu chegar a seu quarto. Parou na porta e olhou para a sua cama. Uma cama. Ela sorriu.

Há exatos 97 anos sua primeira cama fora o frio chão que precedia a porta de um orfanato. Seus pais a haviam deixado lá a noite toda, só sendo encontrada pela responsável do lugar na manhã seguinte logo cedo. Passou toda a sua infância e adolescência naquele lugar. Ninguém nunca a adotara e ela na verdade até se sentiu feliz por isso. Talvez fossem as manchas brancas em seu braço, talvez fosse sua postura de pobre que nunca dera jeito de mudar; não sabia. Não poderia lembrar-se de todos os momentos felizes que passou lá, mesmo sendo poucos, pois a memória já não lhe ajudava tanto. Mas lembrava-se claramente do dia em que de lá saiu. Depois que fizera dezoito anos ela decidiu enfrentar sua vida. Foi neste momento que sua vida realmente começou a mudar.

Uma amiga também decidira sair no mesmo dia, então ambas procuraram um emprego e juntas conseguiram pagar um pequeno apartamento e quando eu falo pequeno não estou brincando. Elas dormiam na mesma cama, comiam também nela, já que não havia espaço para uma pequena mesa. Mesmo assim foi aconchegante. Ela conseguiu um emprego de garçonete e sua amiga de atendente em uma pequena loja. Um dia então sua amiga recebeu uma proposta de trabalhar em outra cidade, nisso as duas se separaram e ela teve que arcar com toda a despesa da casa, mesmo que tivesse sido reduzida um pouco. Começou a fazer alguns bicos em casa de conhecidos e antigos conhecidos do orfanato que também haviam saído. Com o pouco dinheiro que ganhava na lanchonete e o que ganhava com os bicos ela conseguiu fazer faculdade de pedagogia. Foram dias de muito esforço, mas ela finalmente conseguiu se formar e compartilhar sua alegria com suas duas únicas amigas.

Conseguiu então um emprego de professora. Gostava de ensinar as crianças. Via nelas uma curiosidade que ela perdera há muito tempo. Isso às vezes a animava a prosseguir. Não entendia como algumas pessoas tinham coragem de maltratar seres tão pequenos e frágeis e quando via isso acontecer enxergava a si mesma em sua tenra infância.

Como professora conseguiu se sobressair e foi convidada a dar aulas numa escola particular. Ensinou também a adolescentes e jovens. Poderia compreender um pouco da revolta deles, já que muitas vezes também havia se revoltado com a vida.

Conforme o tempo ia passando se envolveu em alguns relacionamentos amorosos, mas eram tão breves quanto seu salário no fim do mês. A relação mais longa que teve durou apenas seis meses e terminou por causa dela mesma, já que via que os dois não iriam ficar juntos por muito tempo.

As únicas amizades que tinha eram de uma mulher que trabalhou com ela na lanchonete durante um tempo e outra jovem mulher que havia trabalhado no orfanato onde fora sua moradia por tantos anos. Elas saiam para se divertir, combinavam programas para o fim de semana juntas e sempre terminavam completamente bêbadas nos domingos. Conversavam sobre o passado e o que imaginavam do futuro, mas havia um tipo de conversa que ela nunca suportava. Por vezes suas amigas lhe indagavam se ela não sairia em busca de seus pais biológicos. Ela sempre demonstrava uma alegria estampada em seu rosto através do sorriso, no entanto quando esse assunto vinha à tona ela fechava a cara instantaneamente. Nunca teve vontade de procurar seus pais. Pra ela eles haviam deixado bastante claro o quanto a queriam perto de si e por isso nunca lhe passou pela cabeça a ideia de sair em busca deles. Na verdade ela não queria saber nenhum tipo de notícia deles, mesmo que estivessem vivos ou mortos para ela não faria diferença alguma. Depois de um tempo suas amigas viram que esse assunto poderia trazer o rompimento de suas amizades e nunca mais o mencionaram.

Após se aposentar passou a dar aulas particulares e entregou-se a um novo hobby: tricotar. Começou até a ganhar alguns trocados fazendo tricô. Vizinhos viam suas criações e pediam para que ela fizesse algo para eles. Precisava distrair-se, já que suas únicas companhias agora, sendo que suas amigas também viviam de forma diferente desfrutando de suas aposentadorias, eram apenas sua televisão, que ela só ligava para ver os jornais e uma novela pelo horário da tarde, e sua gata que parecia estar mais velha que ela e só levantava para fazer suas necessidades; tão gorda como uma porca.

Mas agora ela estava ali. Solitária e prestes a deixar este mundo. Aproximou-se da cama e deitou-se com dificuldade. Ficou de barriga para cima contemplando o teto. Morreria ali e depois seria encontrada pela filha de sua amiga. Tudo estava acabado. Sua mente agora poderia descansar em paz.

Num último momento de reflexão imaginou o rosto de seus pais, uma visão parca de algo que ela nunca tinha visto e nem veria. Viu o rosto de todas as pessoas que conhecera em sua vida. Lembrou-se de momentos alegres e tristes. Lembrou-se de tudo o que havia conseguido com seu esforço, seu trabalho e sua força de vontade. E agora nada daquilo fazia sentido para ela. De nada adiantou, pensou. Olhando para os móveis no quarto viu no que seu dinheiro havia sido investido. Na verdade não viu muita coisa que ela comprava para ela mesma, a não ser tudo aquilo que necessitava de verdade. A gata, que gastava mais em comida para ela do que a própria feira que fazia todo mês deveria neste momento estar dormindo em sua caminha ao lado, mas parece que a natureza a havia chamado. E a natureza agora estava chamando ela também.

Havia aprendido muita coisa, tido várias experiências, conhecido inúmeras pessoas, com todas as suas diversas personalidades, mas de que tudo aquilo havia adiantado? Sabia que seria lembrada, mas de que adiantava ser lembrada se ela não teria mais consciência disso? Agora que já não mais importava o que ela havia passado deste lado não se importava também com o que a esperava do outro lado. Pensou nas pessoas que deixaria e logo viu também que antes elas é que a haviam deixado. Tentou pensar altruisticamente nos outros, mas concluiu “o que estou fazendo? Agora é a minha hora, mais do que nunca, de deixar de preocupar-me com os outros e pensar em mim mesma”.

Não sentia tristeza agora, nem alegria. Ao pensar sobre seus pais não lhe brotariam lágrimas, nem ódio, nem alegria. Estava vazia. Esticou seu corpo o mais que pôde na cama confortável. Sentia o frio chegando. Fechou os olhos e deu um último suspiro. Um suspiro de alívio.

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