Epilepsia: doença enviada pelos bons deuses

por Miguel Fernandez








M
as, paulatinamente, os intervalos daqueles chiliques foram encurtando e o que antes se manifestava por meio de triviais alterações de comportamento – como perder por instantes a noção de quanto o cercava ou responder absurdos a perguntas banais – provocando zombarias entre fregueses e agregados –, transformou-se na ênfase de um generalizado estremecimento corporal no meio de uma noite que despertou aterrorizada a tia, deitada a seu lado. Esta senhora, agreste iletrada e nada afeita em complicados, bastando-lhe saber que toda massa de pão resulta da mistura de farinha de trigo, água e fermento e o lucro de sua venda chegar a mais de 100% do investido, na essência de todo e qualquer fenômeno inexplicável, haverá, para tudo elucidar indiscutivelmente, o misticismo; destarte, o primeiro consultado a descobrir o cerne, foi o padre domingueiro que, numa breve observação, afiançou tratar-se de artimanhas do demônio. Porém, devido à continuidade dos acessos convulsivos, o segundo consultado – a muito rogo e custo, não em reis, mas em convicção –, foi um médico que após sucinta análise, diagnosticou a mesma doença acolhida por Martinho Lutero – com tamanha maldição, que a somou ao inventário das pestes rogadas à Igreja Católica, entre sífilis, escorbuto, lepra e carbúnculo -, com o insinuante codinome latino de morbus demoniacus: epilepsia.
Quiçá por menos mórbido ou demasiado antigo, o epíteto dos egípcios fora sepultado com suas múmias: Nesejet: doença enviada pelos bons deuses. No entanto, a versão escolhida e difundida aos quatro ventos pela santíssima e supina ignorância, foi a estigmatizada por Lúcifer, Belzebu, Lusbel, Satã ou Asmodeu, entre os cristãos. Exu, Leba e Cariapemba, entre os orixás; Jurupari, Anhangá e Caipora, para os ameríndios.
E para D. Adelaide, o diagnóstico clínico não passava da opinião de quem não entende de possessões, e pôs um fim a suas considerações em compartilhar leito e volição, provocando o distanciamento, que se alargou até um habitáculo adaptado às pressas nos fundos do sobrado, onde o jovem instalou-se de cama propriu, a ocultar dos serventes e clientes da padaria, as possessões satânicas que ela apostava seu sobrinho ser receptor. Mesmo submetendo-se às subsequentes e aterradoras mandingas mandadas realizar pela viúva galega, os acessos continuaram incólumes às feitiçarias e benzas. Acabando por abrir mão da empreitada que o exorcizaria devolvendo-o à sua cama e ao balcão da padaria, D. Adelaide, derrotada pelo suppositum posseiro, substituiu o vazio do leito pela renúncia.
Encafofado no meio de esquecidas plataformas de madeira e formas de pães, repletas de aranhas nos seus recônditos, engolfado entre sacos de farinha, passou-se o trajeto da puberdade durante o qual, com pavor de ser enviado para alguma prisão, asilo ou lazareto, destino de muitos dos portadores da mesma síndrome, esquivou-se de situações que pudessem precipitar um ataque em público. Como decorrência, seu interesse em descobrir origem e cura tornou-se impulso cada vez mais persistente e aflitivo...
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() Do capítulo: "No resumo dos antecedentes hereditários, gestacionais
e obstétricos do Dr. Fernando Garcia",
extraído do romance "Moscas e Aranhas de Guerra" de Dalton W. Reis

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6 Comentários

Essa coisa chamada epilepsia, nasceu também comigo sobre a forma de convulsões.
Ainda hoje ando medicado...

Abraços!
Ed Santos disse…
Lembrei do meu "O ombro perto do queixo" publicado aqui no TC.

Não queria ter que passar pela puberdade engolfado entre sacos de farinha.

Abraço,

Ed.
Miguel Angel disse…
Fui lá ler teu texto "o ombro..." e gostei muito... Por acaso aquele relato "...perto do queixo" é - digamos - auto biográfico?
Abçsss
Ed Santos disse…
É, digamos, totalmente biográfico...

Abraço.
Anônimo disse…
OI, Miguel & Anjo.
Que abordagem interessante para o novo romance... um salto quase quântico das guerrilhas e sexo incandescentes, passando pelo gato intruso, até a agora epilepsia!!!heheheheheheh.
Tens mesmo uma bela e criativa imaginação, que Deus o mantenha assim.
Como sempre, apreciei!
Um beijão.
A Condessa Descalça.
Miguel Angel disse…
Condessa descalça, mas vestida de força, afeto e incentivo!
Bom saber que andas pelaí, perto de mim e das minhas garatujas!
"Que Deus te mantenha assim"
Beijão