Conto de Gustavo do Carmo
— Amor, me dá um ósculo?
— Não.
— Por favor, Benzinho?
— Agora não posso, Dedé. Estou tentando fazer uma conta que não está batendo com a féria do dia. Depois eu te dou.
— Eu quero agora!
Benvindo se estressa e grita:
— Porra, Derlaine! Já falei que agora eu não posso! Não está me vendo concentrado aqui nas contas da livraria?
— Ah, dá um tempinho, vai. Você está cansado! Eu só quero um beijinho!
— Eu estou cansado, mas preciso terminar estas contas, poxa!
— Se você não me der um beijo eu me jogo desta varanda.
Derlaine se encaminha para a varanda da sala do apartamento, que fica no oitavo andar.
— Ó, eu estou me sentando no parapeito. Se não vier eu jogo o meu corpo para trás.
Preocupado e já com medo da esposa cumprir a promessa, Benvindo corre para evitar a tragédia. Felizmente, consegue puxá-la para si. Ela cai sobre ele, que vai ao chão de costas. Os dois finalmente se beijam. Benvindo cede à chantagem de Derlaine e esta consegue o que queria.
Mas Benvindo acaba gostando do beijo e pede mais. É atendido, mas logo ele pede para fazer sexo.
— Você não estava ocupado, não queria fazer conta?
— Eu deixo pra fazer amanhã.
— Só porque você quase me fez me jogar pela janela eu não vou transar com você.
— Não vai, não?
— Hum, hum, rosna em tom negativo.
— Então tá.
Benvindo se levanta, calça um sapato, pega a jaqueta e as chaves do carro e vai em direção à porta.
— Aonde você vai?
— No bordel procurar uma prostituta. Se eu pegar uma doença venérea a culpa será sua.
— Está bem. Eu faço.
Os dois fizeram o melhor sexo do casamento. Mesmo assim Benvindo encerra o ato com um ar angustiado. Ele se senta na cama e confessa para a esposa que o movimento da livraria está fraco e que está se sentindo doente. Descobriu algo estranho na garganta e disse estar com medo de ter desenvolvido um câncer e deixar os filhos desencaminhados.
A preocupação maior é com a filha do meio, Irene, que se formou em comunicação social, não conseguiu emprego por causa da timidez, mas se recusa a estudar para um concurso público. O problema é ainda mais grave porque Irene beira os trinta anos, é solteira e ainda quer ser escritora. A irmã, Tássia, três anos mais velha, é casada e concursada do Banco do Brasil. Costuma apoiar o pai na cobrança para a irmã ser aprovada no concurso público. Considerada por Irene como a sua melhor amiga, aproveita este sentimento para fazer chantagem contra a irmã imatura ameaçando não falar mais com ela se ela não estudar.
Outro medo é não ver o filho caçula Gabrielzinho crescer. O menino tem apenas nove anos e é muito mimado. E exatamente neste dia em que os pais acabaram de transar, Gabrielzinho encontra o pai saindo do quarto e pede:
— Pai, sabe aquele carrinho de controle remoto que vimos no shopping no sábado?
— Sei não, meu filho.
— Você compra ele pra mim?
— Gabriel, o papai tá duro.
— Mas eu queria ele, pai. Gabrielzinho diz com a voz embargada e os olhos marejados.
— No seu aniversário o pai te dá.
— Mas eu quero hoje! O meu aniversário é só daqui a oito meses. O menino começa a se alterar.
— Hoje eu não posso, Gabriel! Não acabei de dizer que eu estou duro? — Repreende Benvindo.
— Se você não me der o carrinho hoje eu fujo de casa.
— Está bem, vamos lá no shopping agora.
— Oba!
O menino conseguiu o que queria. Voltou seis horas depois, já brincando com o carrinho e empanturrado de lanche. Pai e filho são recebidos por Derlaine que os pergunta se querem jantar.
— Não. Eu e o Gabriel comemos muito no shopping.
— Por que não me avisaram antes?
— Ele insistiu que eu fosse comprar um carrinho de controle remoto pra ele. E você sabe como o Gabriel é. Não pode sentir cheiro de lanchonete que pede para comer.
— Eu passei o resto da tarde fazendo janta pra você e ninguém come, porra! Eu já estou com o braço doendo de tanto mexer panela! — Grita Derlaine.
Já irritado, Benvindo reclama:
— Alguém te mandou fazer janta, por acaso?
— Mas eu faço todos os dias. É a minha obrigação de dona-de-casa. Lavei roupa a manhã inteira! Fui ao supermercado antes de te pedir aquele beijo! As minhas varizes estão queimando! Acho que eu vou morrer!
— Deixa de bobagem, Derlaine! Ninguém morre por fazer serviço de casa!
— É o que você pensa! Olha como as minhas pernas estão inchadas! Olha as minhas varizes: como estão pretas! Mas eu tenho de fazer todo o serviço de casa sozinha! Não tem ninguém pra me ajudar! Não tenho marido, não tenho filhas, não tenho empregada. Quando eu morrer todo mundo vai ficar chorando de remorso no meu caixão!
Derlaine termina de falar e cai aos prantos no sofá. Não sem antes quebrar um vaso de enfeite que estava sobre a mesa de centro. Igualmente nervoso, Benvindo contra-ataca:
— Vai ficar fazendo drama? Eu faço também! Eu trabalho o dia inteiro na livraria para sustentar a boa vida de vocês! E olha que a livraria está quase falindo! O movimento do dia mal dá pra pagar os fornecedores! Mas ainda assim tenho que pagar conta de água, luz, telefone, internet, tv a cabo, brinquedos para o Gabrielzinho. A Irene bem que podia trabalhar na livraria! Mas ela não quer! Depois diz que quer ser escritora!
— A Irene não deu certo na livraria! Ela tentou trabalhar lá. Você quem não quis!
— Então ela pode muito bem arrumar outro emprego. Nem que seja de faxineira! Bem que ela podia estudar para um concurso público! E vou mandar ela fazer isso agora!
Benvindo vai ao quarto de Irene, que escutou a discussão dos pais e se deitou de bruços na cama, chorando. Ele bate a porta, mas não é atendido.
— Irene! Irene! Abra essa porta!
Benvindo decide arrombá-la. Diz logo:
— Olha, a sua moleza vai acabar, hein? Eu estou quase fechando a livraria! Você vai se inscrever agora naquele concurso público para a Procuradoria Geral da União e quero ver você estudando!
— Eu não vou fazer, porque eu não vou passar! Concurso público não se passa e nem consegue estabilidade com essa facilidade toda!
— Estudando você passa! Vai ter que se matricular no cursinho! Na favela da esquina tem um comunitário que não cobra nada!
— Para, pai! Para de me humilhar! Eu não vou fazer cursinho para concurso público em favela! Você não me apóia em nada! — Diz a moça aos prantos.
— Se não fizer eu te expulso de casa!
— Então me expulse! Aliás, quer saber? Eu vou embora de casa, mesmo! Irene pega a bolsa de viagem, põe as suas roupas e vai dizendo: — Eu vou embora dessa casa, sim! Não aguento mais morar aqui! Tudo tem que economizar. Eu sei muito bem que o movimento da livraria está bom! Você está usando isso é para fazer chantagem e mandar a gente economizar! Mas não vou cair nessa!
— Ah, é? Eu vou te mostrar as notas promissórias da dívida que eu tenho! Eu vou te mostrar o exame médico que eu fiz! Eu vou morrer e deixar vocês à míngua para aprenderem a me dar valor e a economizar!
— Se você me expulsar de casa eu vou à favela da esquina, sim! Mas para comprar drogas! Você vai ter uma filha viciada! Vou vender tudo aqui de casa para comprar pó! Ou você prefere que eu me suicide?
Irene pega o estilete que estava usando para fazer artesanato e encosta no pulso.
— Eu vou me matar, hein?
— Está bem, minha filha. Depois a gente conversa!
Durante a discussão de Benvindo com a filha o telefone toca. Derlaine atende. Era Tássia, que ligava desesperada.
— O que foi minha filha?
— O Claudir me chamou de gorda! Dá pra vir aqui?
— Ai, filha. Eu estou cansada! Acabei de discutir com o seu pai.
— Mas você nunca me dá atenção, mãe! Se fosse a Irene ou o Gabriel você estaria correndo para atender.
— Não é isso, Tássia! Acho que você não pode exigir que eu me desloque até a essa hora da noite só para te consolar porque o teu marido te chamou de gorda!
— Mas ele me bateu, mãe! Eu estou toda roxa! Se você não vier eu vou beber até ficar em coma alcoólico.
Claudir, um homem magro, honesto e calmo, toma o telefone da esposa e esclarece para a sogra.
— Dona Derlaine. Eu juro que não fiz nada contra ela. Eu apenas reclamei que ela estava comendo muito pavê e disse que ela ia ficar gorda.
— Mas por que você bateu nela? — Pergunta Derlaine secamente.
— Eu apenas a sacudi, minha sogra. Ela começou a fazer um escândalo só porque eu pedi para ela moderar no pavê. Não precisa vir a essa hora.
Tássia puxa o telefone e grita para a mãe ouvir.
— É mentira, mãe!
— De qualquer forma eu vou até aí.
Tássia desliga o telefone e vibra com o que conseguiu. Claudir bufa e resmunga.
— Se eu soubesse que a sua família fazia jus ao seu sobrenome, jamais me casaria com você.
E se Benvindo soubesse que teria uma família tão dramática, abandonaria o sobrenome Drähm, herdado do avô alemão.
No dia seguinte, Benvindo vai ao consultório do psicanalista. Meia hora depois a recepcionista o chama pelo nome completo.
— Benvindo Lobo Drähm!
— Sim.
— O senhor já pode entrar.
— Ah, tá! Obrigado.
Na sala do consultório, Benvindo desabafa todas as chantagens e dramas familiares da véspera e dos outros dias.
— Senhor Benvindo. O senhor alguma vez já experimentou tentar não ceder às chantagens da sua família?
— Já e não consegui. Eu fico com pena. E com medo de acontecer realmente alguma tragédia.
— Em compensação, o senhor entra no jogo e alimenta a situação. Tente ser mais firme ou o seu sobrenome será cada vez mais adequado à sua família. Passar bem.
Quando chega da consulta, morto de cansaço e estressado com o trânsito, Derlaine o recebe pedindo um ósculo.
— Ah, de novo não, Derlaine.
— Se você não quiser que me dar um beijo de novo, já sabe o que vou fazer.
— Vai fundo que hoje eu não vou cair na sua chantagem.
Derlaine se encaminha para a varanda da sala do apartamento.
— Ó, eu estou me sentando no parapeito. Se não vier eu jogo o meu corpo para trás.
Benvindo finge não ouvir a ameaça da esposa. Só não conseguiu ignorar o grito de Derlaine e o estrondo seco um minuto depois.
0 Comentários