CADÊ AS MINHAS FICHAS?

Conto de Gustavo do Carmo
 
Me chamo Norma Célia. Sou professora de ensino fundamental. Dou aula de geografia e história para alunos da oitava série. Preparo as aulas de véspera, todos os dias, depois que eu chego da escola. Trabalho em uma pequena instituição particular chamada João Paulo II.
 
Logo que eu termino de preparar as aulas resumo tudo em fichas de papel, daquelas pautadas. Organizo tudo em ordem alfabética, de acordo com o assunto. Faço ficha de tudo: temas, bibliografia, personagens, exercícios, entre outros. Guardo tudo numa caixa de acrílico com chave e a protejo com uma frasqueira de couro.
 
Aprendi a fichar com a minha mãe, que era bibliotecária. Ela ainda está viva, graças a Deus! Só que está aposentada há quase trinta anos e bem velhinha.
 
Num desses dias de aula, estava lecionando em uma das escolas quando um aluno franzino, de óculos, veio me procurar para denunciar um grupo de colegas que o humilhava. Não era a primeira vez que ele reclamava. E também não era o primeiro aluno. Um menino gordo e outro afeminado já tinham feito as mesmas acusações.
 
Mandei que eles falassem com a diretora. Os três disseram que têm medo dela, pois era muito rigorosa e não tinham coragem para entregá-los. Pelo contrário. Tinham medo de represálias. Não que eu não quisesse ajudá-los, os coitados só confiavam em mim. Só que eu não me dou bem com a diretora Laura. E esta parece que é muito amiga do pai de um dos agressores. Nunca iria fazer nada. De qualquer forma, anotei a queixa nas minhas fichas.
 
Sou tão dedicada a elas que, às vezes, me sinto neurótica. E os alunos já perceberam isso. Tanto que alguns deles adoram me provocar. Deram para bagunçar as minhas queridas fichas.
 
Aff! Odeio quando tiram uma única ficha do lugar. Neste caso eu só fico puta e coloco na ordem. Mas quando bagunçam o arquivo todo, prendo todo mundo na sala na hora da saída ou do recreio, até que o culpado se apresente. Dependendo do aluno eu até não faço nada, a não ser dar um duradouro sermão. Não mando ele arrumar porque elas contêm algumas informações pessoais e gabaritos de provas. Não dou esse mole. Ou dou?
 
Tentei manter a calma até o dia em que o meu fichário sumiu. Meu mundo caiu. Toda a minha vida estava naquelas fichas. Entrei em depressão. Faltei pela primeira vez na minha carreira de professora. Consegui que a diretora Laura ficasse do meu lado e me ajudasse a procurar o fichário e punir os culpados.
 
Uma semana depois, a minha razão de viver reapareceu. Destruída. O fichário de couro estava sujo de lama. Metade das fichas estava rasgada. A outra metade, queimada. Se o meu mundo tinha caído quando elas sumiram, agora eu senti o impacto.  
 
Fiquei um mês em casa, sem sequer me levantar da cama. Foi só quando vi a minha mãe, fraquinha, tentando me ajudar e me dar comida na boca é que eu acordei e juntei forças. Me deu pena dela me olhar com pena. Eu que precisava cuidar dela e não ela de mim.
 
Fui até ao escritório do meu falecido pai. Revirei as gavetas do armário dele e encontrei uma caixa de couro. Me lembrava até a caixa onde eu guardava as minhas fichas.
 
Depois de chutar e acertar de terceira a senha de metal, abri e encontrei um revolver de cinquenta anos, que pertencia ao meu bisavô. As balas ainda estavam lá. Papai as tinha comprado uma semana antes de morrer.  
 
Restava saber se ainda funcionavam depois de vinte anos. Como eu ia testar? Se eu atirasse aqui em casa ia assustar a minha mãezinha. Decidi atirar sem testar, mesmo. Se falhasse e ninguém percebesse, talvez o meu ódio esfriasse.
 
Pela manhã, fui normalmente dar aula. Sem as minhas fichas, que ainda estavam sendo refeitas. Todos os meus alunos me aplaudiram. Ficaram felizes com a minha volta. Ouvi as mesmas queixas de bullying. Orientei os alunos mais tímidos. Dei bronca nas algazarras e expus as matérias.
 
Fiquei ouvindo a conversa dos baderneiros, nos intervalos, para saber onde eles iriam passar a noite. Era o início do meu plano. Tenho certeza de que foram eles que destruíram as minhas fichas.
 
Antes de começar a aula da oitava série, entrei escondida na secretaria e vasculhei as fichas dos alunos. Queria descobrir onde os tais suspeitos moravam. A João Paulo II tinha por norma não fornecer endereços de alunos para terceiros. Nem para os professores.
 
Já podia me sentir vingada ao mexer no arquivo alheio. Mas eu precisava me vingar dos alunos que roubaram as minhas fichas. Não da escola.
 
Descobri o nome dos alunos. Um se chamava Anderson Natalino de Jesus, morava no Méier. O segundo, Emílio Andrade Motta, da Barra da Tijuca. E o terceiro, Aparecido Nascimento do Carmo, residente em Duque de Caxias. Deu tempo de tirar Xerox de todas as matrículas antes de ouvir o ruído de alguém entrando na antessala da secretaria. Saí com a sensação de que esqueci alguma coisa. 
 
Dei aula normalmente até o final do expediente da tarde. Liguei pra minha mãe avisando que iria chegar tarde em casa. Disse que ia sair com uns amigos. Minha mãe disse apenas “Vai com Deus, minha filha! Se divirta! Você está precisando.”
 
Entrei no meu carro popular de segunda mão e comecei a seguir o Emílio, que foi para o ponto de ônibus. A escola fica na Tijuca. Tão logo ele pegou o ônibus, engatei a primeira e o segui.
 
Com tanta volta que o ônibus deu mais os engarrafamentos da hora do rush, já estava escuro quando chegamos à Barra. Ele saltou num ponto deserto. E caminhou na direção do meu carro. Tive que me esconder quando ele passou por mim. Ainda bem que ele não me reconheceu.
 
Fiz uma bandalha com o meu carro para mudar de direção sem perder tempo com aquele retorno enorme. Segui o jovem. Era o momento certo para atirar. Virei-me para pegar a arma.
 
Dei um tiro certeiro a três metros de distância. Varou o pescoço. O adolescente de camisa branca caiu abatido como um cervo. Fugi imediatamente, mas saí sem acelerar para não chamar atenção. Dei graças a Deus por ninguém ter me visto.
 
Segui o meu caminho até o próximo destino. Onde? Puta merda! Lembrei o que eu tinha esquecido: a ficha dos elementos. Ainda bem que eu lembrei que o Aparecido morava em Duque de Caxias.
 
Fui até lá. Meia hora depois, que sorte, vi o rapaz num churrasquinho numa praça da cidade. Estava movimentada, mas o local onde eu estacionei o carro estava deserto. Deu pra sair do veículo e ter a liberdade de descarregar a minha raiva sem ser percebida. Dei cinco tiros. Vi dois acertarem a cabeça e o peito do Aparecido. Fugi novamente, sem acelerar. Todos acharam que foi bala perdida.
 
Cheguei em casa no Méier e encontrei mamãe toda ensangüentada, parada na porta. Me desesperei. Corri para abraçá-la e perguntar:
 
— Mãe, o que houve?
— Dei cinco tiros num filho da puta que ficou zombando das suas fichas. Isso foi pela sua honra e pra esse vagabundo aprender que ninguém debocha de uma bibliotecária. 
 
À frente dela, sobre uma poça de sangue, estava o corpo do Anderson, o último baderneiro que eu ia matar. Mamãe usou outra arma de papai, uma pistola Magnum 44. Sujas de pólvora e sangue, abraçamos emocionadas - eu agradecida pelo gesto maternal – antes de sermos algemadas.
 
Além da brutalidade do crime, fomos condenadas porque matamos os alunos errados. Foram as vítimas de bullying: o menino gordo, o gay e o CDF quem destruíram as fichas. Descoberta pela minha impressão digital nas fichas esquecidas e por testemunhas em Duque de Caxias, peguei dezenove anos de cadeia. Mamãe, mesmo pega em flagrante, pelos seus noventa anos, apenas doze.
 
Ela ficou num asilo. Eu no Talavera Bruce, onde trabalhei como bibliotecária para reduzir a pena. Depois de ser solta e recomeçar a minha carreira de professora, troquei as fichas de organização de papel por um tablet. Até que um dia ele sumiu. 
 

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