Se eu “puxar pela memória” o período mais bizarro da minha vida foi o ano de 1999. E sem que eu precise fazer muito esforço, a noite mais bizarra daquele ano foi durante as férias, em dezembro. Tudo o que aconteceu naquela noite parecia uma poção sendo preparada no caldeirão de uma bruxa, fervendo sobre as chamas do fogo do inferno.
No começo daquele ano, alguns alunos tinham ido reclamar na diretoria sobre algo que a princípio eu não entendi muito bem. Alguns meses depois uma nova regra foi passada de sala em sala pela diretora e a secretária. Essa nova regra confirmava que era terminantemente proibido o uso de bermudas, shorts e saias no interior do colégio, mas, e era esse “mas” a vitória da reclamação de alguns alunos no início do ano, a partir daquele dia toda sexta-feira estava liberada para os alunos usarem as roupas proibidas.
A partir da semana seguinte toda as sextas-feiras que se seguiram foram batizadas de Sexta Sex.
Os garotos usavam bermudas de praia ou aquelas cheias de bolso que começavam a entrar na moda. Já as meninas, bem, as meninas se tornaram a alegria de todos os rapazes a cada sexta, expectativa de cada quinta-feira, alegre lembrança de todo fim de semana. Elas usavam mini-saias e aqueles shorts muito curtos, os mesmos que as mulheres mais velhas apontavam reclamando e desaprovando dizendo que mostrava “a polpa da bunda”. Claro que nem todas as garotas eram agraciadas por um belo par carnudo de glúteos, mas as que eram se tornaram colírios para muitos alunos, e professores também, claro. Eu era um dos caras felizes com essa nova regra.
Muita caneta caiu naquele ano para que pudéssemos ver a cor das calcinhas das que usavam saia. Quase não havia olho no olho com tanto decote. E, por mais que muita gente da diretoria e algumas professoras desaprovassem totalmente essa nova regra, não havia mais nada a ser feito. “A caixa de Pandora já está aberta”, disse a senhora da cozinha.
Inspirados nesse novo estilo, atiçados pelas gostosas da nossa classe e de classes vizinhas, uns amigos e eu planejamos uma festa no dia 23 de dezembro. Os pais do Robson passariam as duas semanas de Natal e Ano Novo no interior, no sítio dos avós dele, então ele teria a casa só para si, com a piscina e tudo. Nada poderia ser mais perfeito.
Convidamos todo mundo, que convidou mais meio mundo, então quando nos demos conta havia mais de 200 pessoas na casa de primeiro andar, com quintal espaçoso, piscina e churrasqueira. Enchemos dois freezers de cerveja, a geladeira de carne, juntamos 3 videocassetes, alugamos várias fitas, gravamos outras fitas k-7 com sucessos daquela época e, às 18 horas do dia 23 de dezembro de 1999, abrimos o inferno.
Acima do som de Californication, do Red Hot, alguém grita do telhado para que prestem atenção, pois ele vai pular na piscina. É Bruno, com uma bermuda laranja que doía nos olhos, mesmo sob a luz artificial. Ele pula e salpicos de água atingem muita gente, inclusive meu bíceps no braço que segura uma garrafa de cerveja. Todos gritam.
Está fazendo muito calor e nem a cerveja muito gelada e a água fresca da piscina estão dando conta, mas quem se importa? Meninas desfilam dos lados da piscina e pelos cômodos da grande casa com seus melhores e mais curtos biquínis. Algumas usam maiô, e são essas, eu percebo, que tem alguma gordurinha na barriga ou dos lados dela.
Corpos, garrafas e latinhas estão suando em meio a nuvens de fumaça de cigarros de nicotina e maconha. Para qualquer lugar que você olhe tem alguma coisa interessante acontecendo, alguma coisa que pode te chamar atenção. Uma coluna de fumaça se ergue da churrasqueira, onde o Tom se encarrega de assar os nacos e carcaças de animais mortos e nisso, ele é o cara.
Eu nunca fui a pessoa mais popular do mundo. Eu sou aquele cara que vive no meio dos caras populares e posso ser mencionado por esse fato e simultaneamente ser bastante esquecível. Então ninguém se importa se eu paro num grupinho para puxar conversa ou apenas fico por aí voando. E é justamente isso que eu faço. Gosto de observar as pessoas. Porque eu gosto de desenhar, dessa forma eu olho para as pessoas e o que minha mente guarda são as imagens estáticas, esse congelamento de atos comuns, que depois eu vou passar para o papel.
Deixo a garrafa de cerveja vazia e pego mais uma de uma das caixas de isopor que espalhamos pela casa, para que cada um tivesse bebida à mão quando quisesse. A ideia foi minha. Nesse momento eu começo a ouvir palavras mais altas que as normais e vem da sala. A sala é o maior cômodo da casa. Se brincar, cabem todas as pessoas ali, mesmo bem juntinhas, mas cabe.
Tem 3 pessoas diante da TV, brigando sobre que fita colocar primeiro no videocassete. Muitos estão rindo da discussão idiota, outras apoiam um dos 3. Eu vou me aproximando e vejo que cada um tem uma fita na mão, com suas respectivas capas mostrando o que é, menos a que está na mão de Alicia. Alicia sempre tem essa cara com um sorriso falso, desses que parecem doer. A fita dela não tem capa, apenas um adesivo colado no centro, mas a mão dela tapa o que está escrito.
As vozes se avolumam, gritos, risadas, palavrões. Então Robson faz uma de suas aparições do nada e solta um de seus famosos gritos guturais, fazendo todas as pessoas se calarem. Ele pergunta o que diabos está acontecendo, e o que pensam que estão fazendo e por que essa bagunça toda. Então Alicia se apressa em explicar. Agora apenas um burburinho se ouve pela sala, esperando que o dono do local decida o que fazer. Ele pega a fita da mão de Alicia e eu, que estou atrás dele, consigo ler o que tem escrito no adesivo com caneta vermelha: Allendar. Robson a ergue acima da cabeça e fala:
“Bando de filho da puta! Se essa é a única fita que não tem capa e ninguém sabe o que é, é só colocar ela primeiro! Vocês são burros ou o que?”
Todos caem na gargalhada. Robson pergunta a Alicia se foi ela que a trouxe e, franzindo a testa, ela responde que não, que estava dentro da estante onde fica a TV e o vídeo. Robson olha para a fita sem entender. Pelo modo como age, ele nunca viu tal fita. Mas esquece logo disso e senta em frente ao cassete para inseri-la.
“Vamos ver o que é e se não prestar a gente escolhe outro!”
Todos concordam e o volume das conversas começa a aumentar novamente. Então Robson coloca a fita. O videocassete dá alguns estalos, depois emite um zunido hidráulico que aumenta de intensidade e volume até parar, parecendo um avião prestes a decolar. Então a fita começa a rolar devagar.
Após um barulho de estática a imagem se divide em linhas horizontais que vão descendo até se estabilizar. O vídeo mostra escuridão e em seguida uma luz é acesa e podemos ver uma mulher sentada no chão, as costas na parede descascando, seus cabelos parecem um polvo negro e morto, os tentáculos caindo em seu rosto. Nesse momento eu me posiciono em frente à TV e posso ouvir o murmurar das pessoas ao meu redor chamando as outras para que vejam. Assim o arrastar de sandálias e as cutucadas para entrar na sala vão se ouvindo até tudo permanecer em silêncio, hipnotizados pela imagem em preto e branco na TV.
A imagem treme um pouco e não há som. A mulher começa a coçar o braço direito. Coça com força, até vermos uma mancha escura nele e em seguida um líquido negro começar a jorrar. Ela continua a coçar, com seus dedos pegajosos afundando na carne que vai se abrindo. Sem esboçar o mínimo sinal de dor ou desconforto, imóvel, ela apenas começa a puxar a pele que vai se soltando, o sangue esguichando no chão imundo. Sem parar de coçar, os seus dedos vão entrando na sua carne dilacerada e puxam os tecidos. A imagem não me parece muito forte, talvez por falta de cores, mas a ausência de expressão corporal da mulher é inquietante. Ela passa a puxar tiras de sua própria carne, com certa dificuldade, e quando trava em algum lugar ela simplesmente corta com os dentes. O sangue continua banhando seu corpo e o chão. Até que ela tomba para o lado e seus membros começam a se contorcer. A câmera então sai do quadro da mulher tombada e vai virando para a esquerda, onde vemos mais corpos, cada um distante do outro, com várias lacerações em diferentes membros, caídos sobre a poça de seu próprio sangue, inertes. O que parecia uma sala é um corredor, com corpos mortos como se estivessem em fila indiana, cujo fim não dá para ver porque é engolido pela escuridão.
A câmera balança e uma mão aparece, a mão de quem a estava segurando. A pessoa fica na frente dela, mas só dá para ver a lapela de um jaleco. Essa cena é rápida e muito próxima da tela. Acima do bolso tem uma plaquinha de metal com palavras escritas. Tem um “D” na frente, mas manchas de sangue de algum dos corpos naquele lugar estão sobre o restante, então não dá para saber se é doutor ou doutora, mas a palavra seguinte é bem visível. “Allendar”.
A imagem fecha sobre si mesma, estranhamente, formando um ponto branco no meio da tela que se transforma em uma linha horizontal, dividindo a tela e sem seguida some.
O videocassete faz mais alguns barulhos hidráulicos e solta um último estalo. Meus ouvidos estão zunindo. Parece que eu acabei de acordar de um sono tão profundo que me deixou cansado. Minha cabeça é um rádio que sintonizou alguma estação morta. E é aos poucos que todos os meus sentidos vão voltando ao normal.
Meus ouvidos escutam o barulho de algo se rasgando, sendo cortado, esfolado.
Meu nariz sente o odor de algo adocicado e ferroso junto com urina. Tão forte que eu sinto o gosto de metal na língua.
Minha pele percebe que algo morno e espesso goteja em meus braços.
Então eu olho ao redor e a cena que vejo é algo que jamais sairá da minha mente. É algo de uma enormidade tão absurda que eu temo não caber em minha cabeça e transbordar, como pesadelos, pelo resto de minha vida. Ninguém fala, ninguém grita, ninguém chora, todos apenas olham para um horizonte que só eles enxergam. Mas o que fazem, fazem com precisão. Não aparentam sentir algo, mas a dor parece ser em mim.
A garota da 8ª série, Mara, está olhando para o nada enquanto seus dentes rompem a pele de seu braço e sangue começa a escorrer até suas coxas, pingando nas suas pernas. Ela mastiga a própria carne, com barulhos líquidos, sem engolir, apenas mastigando e deixando a carne moída começar a pender.
Outra pessoa quebrou a garrafa de cerveja e está rasgando o lado de sua barriga, esfolando a carne, e eu posso ver algo branco em meio aos rasgos e tiras de músculos e creio que é uma de suas costelas à mostra.
Robson está com um canivete cortando o seu pescoço, esguichando o sangue em outras pessoas que nem se importam. Aparentemente dá para perder muito sangue antes de perder a consciência. Ele roça a lâmina na pele sem sentir nada e eu consigo ver a textura esponjosa de seus tendões.
Alguém morde os próprios dedos perto da janela e, com força, começa a arrancar cada falange, deixando cair os cotocos sobre seus pés.
Uma garota que ainda não tem nem seios está cortando tiras de sua coxa com algum objeto afiado e colocando-as sobre a outra coxa, como se fossem bacon.
Tudo fede a sangue e carne esfolada e fria. Todos ao meu redor cortam, mastigam, flagelam a si próprios, totalmente inconscientes e sem expressão ou qualquer reação, sentados ou deitados no chão que tem cerveja, cigarros, garrafas quebradas, sangue e urina.
Eu engulo em seco. Não há uma única pessoa além de mim que não esteja dilacerando a própria carne. Então tudo começa a girar, tapo os ouvidos para não ouvir o barulho de carne cortada e sangue espirrando, ou o som de corpos exaustos ou sem vida desabando no chão. E tudo fica escuro.
Então tudo fica claro.
Aqui todo mundo usa branco. Todo mundo. O piso, paredes e tetos são brancos. Minhas roupas e os lençóis e cobertores são alvos. O que serve para acalmar e transmitir paz, depois de tanto tempo, tem me causado medo. Eu ainda me assusto a cada vez que vejo um dos doutores com seu jaleco branco e temo qual seja seu nome na plaquinha de identificação na lapela.
Depois de muito tempo esse cheiro de limpeza, de alvejante e produtos químicos fica mais enjoativo que um balde cheio de merda.
Já faz 10 anos depois daquele acontecimento e ainda estou aqui porque, segundo dizem, o meu trauma foi tal que eu jamais poderia ser reinserido na sociedade normal.
Mas o que realmente me causa angústia é não saber porque eu, e apenas eu, sobrevivi a aquela… aquela coisa bizarra que aconteceu. Por que eu não fui afetado?
Eu vivo cada dia sem saber se será nesse dia que eu receberei a visita de Allendar.
Vou até o terraço e há um segurança, gordo e peludo, fumando. Só estamos nós aqui. E o sol é uma enorme bola de fogo amarela e impiedosa no céu. Vou me aproximando para pedir um cigarro, mas paro bruscamente quando vejo a piúba cair no chão e ele virar rapidamente na minha direção, seus olhos mortos, olhando para mim e através de mim ao mesmo tempo.
Ele crava os dentes em seu punho carnudo e peludo, morde com força, como um pedaço suculento de carne mal passada. Sangue escorre do lado de sua boca e desliza pelo braço veioso. Então uma tira fina de pele começa a se esticar como chiclete. Em seguida seu braço começa a pender e aquele fiapo de carne rasga por toda a extensão de seu braço até o cotovelo.
Hemerson Miranda
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