Reza


Lembranças não são realidade. A realidade só acontece uma vez. Lembranças são ficções editadas inúmeras vezes sempre que as invocamos, baseadas numa realidade passada. Então preste atenção no que eu vou contar, mas não confie em tudo o que eu disser.


É sexta-feira e o sol está prestes a morrer no horizonte, queimando o céu em chamas vivas enquanto do lado em que ele havia nascido as nuvens são tingidas por cores iridescentes e esmaecidas. Como sempre fui só, eu me acostumei a fazer as coisas que geralmente competem à parceira, então sou eu que acendo as duas velas para o shabbat. Cabeça coberta pelo solidéu, ombros e costas cobertas pelo talit, eu espalmo as mãos em frente às chamas bruxuleantes e depois as viro para mim, cobrindo meu rosto, enquanto meu pensamento recita uma benção. Quando abro o Sidur e começo a rezar, meu corpo ritmicamente balança para frente e para trás, meus lábios se mexem de forma mecânica, a garganta arranhando o hebraico, uma melodia solitária e repetitiva. Não sei quanto tempo faz que deixei de acreditar no Eterno, mas ali estou eu, como já fiz tantas outras vezes, ainda ligado a um ritual patriarcal e defasado, como uma espécie de tábua de salvação, algo a que eu pudesse me agarrar quando a realidade começa a afogar.

Ainda está calor na Cidade do Sol, então eu ali, coberto pelo manto sagrado, tenho as têmporas e a testa peroladas de suor. A linha do horizonte é o que divide um dia comum de um dia santificado. Ou é o ritual que eu sempre faço ao acender as velas e rezar? Um gesto, um signo e a atmosfera de um dia muda para outro. Eu não faço a chalá, o pão, mas mantenho uma garrafa de vinho kosher na geladeira para celebrar o shabbat. Nesse crepúsculo, após terminar rezando o Adom Olam, eu saio de casa para uma caminhada curta, o desejo de encher os pulmões com o ar noturno, de me refrescar com a brisa suave após uma tarde escaldante.

Quando dobro a esquina e entro na avenida principal, um cheiro quente atinge meu rosto. Os bares e lanchonetes estão se preparando ou já preparados para receber os trabalhadores e casais em mais um começo de fim de semana. Ovo e hambúrguer supuram em fritura nas chapas fumegantes preparando sanduíches abarrotados de ingredientes. Carvão crepita aguardando espetinhos de carnes, frangos, linguiças, queijos, formando uma névoa de aroma agradável a todos os que passam ou permanecem na avenida. Garrafas e latinhas de cerveja são abertas com estampidos de reclamação tediosa. As músicas que tocam são diferentes, mas é o mesmo estilo, às vezes a mesma banda, se sobrepondo ao burburinho das pessoas conversando ou mandando áudios de seus celulares. Quando passo perto de um desses bares um “Hey” me faz virar a cabeça.

A única palavra que eu acho para definir esse momento é hipnose. Digo isso porque nesse momento eu me sinto atraído, não só mentalmente, mas meu corpo responde sem cerimônia a essa atração. Eu posso sentir que fiquei boquiaberto, que sequer pisco, que o mundo ao meu redor foi postergado e a única coisa que existe é a pessoa à minha frente.

“Quer me fazer companhia?”

Ela sorri, olhando para mim com um cigarro mentolado na mão. Seus cabelos negros deslizam até metade de seu pescoço. Aliás, tudo nela é negro. Sombra nos olhos, batom nos lábios finos, blusa e short. Até o allstar. Escorada nas costas da cadeira de plástico branca, ela aguarda alguma reação minha e pelo jeito eu demorei, pois ela começou a franzir o cenho e sorrir torto. Então eu desperto de minha letargia. Nenhuma desculpa rodeia meus pensamentos, meu corpo automaticamente se dirige à mesa e senta. Ela bebe cerveja e come amendoim torrado dentro de uma casca de amido e ervas finas. Pede ao garçom mais uma garrafa e outro copo. Eu não consigo tirar os olhos dela, mas ela não se intimida, e já estava achando que devia realmente me controlar, então pego um amendoim, tomando novamente poder sobre meus membros.

“Sou a Sam, e você?”

Falo meu nome. Ela usa um aparelho de uma cor azulada bem suave. Me trata como se fôssemos velhos conhecidos e eu não lembro de tê-la visto pelas redondezas. Posso estar soando romântico demais, mas não tem nada a ver com floreios literários. O caso é que ela emana mesmo uma aura etérea, de algum modo hipnotizante. A impressão que tenho é de que ela é uma mulher constantemente elogiada como linda, mas continua cética, o que lhe dar certo poder sobre as outras pessoas.

A sensação onírica continua quando a conversa converge a um assunto que eu jamais imaginaria que uma moça como aquela, com aquela aparência, pudesse saber tanto. Horas e cervejas se passam conosco conversando sobre os livros sagrados do judaísmo, seu misticismo, o Zohar e as 10 sefirots. Falo a ela que eu não acredito realmente em Deus, mas continuo a praticar alguns rituais. Ela fala que acredita, mas não é praticante e sim uma curiosa inveterada da Cabala. Tanto eu tenho a ensinar a ela quanto ela a mim, pois ambos somos estudiosos do assunto e alguns pontos são de conhecimento de um e de outro não, o que incendeia ainda mais o diálogo. Há um momento em que eu sinto minha cabeça dar leves voltas, afinal até perdi a conta de quantas garrafas já havíamos bebido, mas ela não mostra a mínima alteração.

“Bem” ela diz, “chegou a hora.”

Minha mente oscila, como espelhismo, a realidade se contorcendo diante de mim.

“Como assim?” eu pergunto. “Chegou a hora de que?”

“De você se despedir desse mundo.”

Eu sorrio depois rio depois gargalho. O semblante dela permanece inalterado e algo em meu próprio corpo começa a perder a substância. A voz de meu pai começa a vir de algum lugar bem de longe, como uma ligação interurbana e começa a ecoar “Você tem que ser como uma rocha. Inquebrável, firme, forte diante de ondas e ventos.”

“Não dê ouvidos ao seu pai.”

Quando ela fala isso sinto que meus olhos se abriram até o limite. E minha boca deve estar escancarada.

“Do que você tá falando?”

“Do conselho do seu pai” ela acende um cigarro, mas a fumaça que expele tem uma cor azulada e é bastante espessa. “Não ligue pro que ele diz. As pessoas costumam usar os objetos, lhes dando características humanas, pra aliviar algumas coisas, mas isso não adianta. Você é humano e as rochas não são feitas de carne e osso. Apenas aceite esse fato e tudo vai ficar mais fácil. Assim como deve aceitar o fato de que você também está morto.”

Então, como o plot twist de um filme, como a revelação de uma mágica fascinante, todas as coisas ao meu redor começam a se desfazer como vapor, como fumaça, a fumaça que sai do cigarro dela. Tudo agora tem a tessitura dos sonhos e só ela e eu permanecemos quase inalterados, pois é como se nossos corpos lutassem para se desfazer também, mas algo neles, talvez a consciência, não permita.”

“Vou explicar” ela diz apagando o cigarro na própria pele alva e que não deixa marcas, mas apenas cinzas que vão esvanecendo. Ela continua e meu corpo é todo atenção para ela.

“Meu nome é Sam, porque me chamo Samael. A Morte aparece para as pessoas como um ser imensamente belo, e a julgar pelo seu olhar assim que me viu, eu cumpri bem o meu papel. Você está morto antes de nosso encontro, quando bebeu aquela taça de vinho e engasgou.”

“Espera aí, eu morri engasgado?”

“Sim, pode rir, é hilário mesmo. E fica mais engraçado quando dizemos que morreu engasgado com vinho kosher. Isso é irônico.”

Não sei se é a bebida ou a anestesia de minha resignação, mas eu rio junto dela.

“De toda forma, não dê ouvidos a seu pai. Não se preocupe em ser uma rocha, pois você é humano e a única solidez que você terá agora é o que mantém a sua imagem, essa que você tem de si mesmo e dará forma a seu ‘corpo’ para que os outros seres espirituais vejam. Fora isso, você não precisa ser forte. Aconteceu e pronto. Basta aceitar, não haverá mais dor alguma.”

“Então é isso? Eu morri? E dessa forma?”

“Sim. Pensou que seria por algum acidente ou o estresse, não é? Pois bem, quem decide isso não é você. Sou eu.”

“E pra que essa coisa toda de me lançar essa imagem sexy e me convidar pra beber?”

“Ora, isso é o que eu chamo de boas vindas. A partir de agora você vai ter tempo livre pra estudar e entender a vida, o universo e tudo o mais. Mas não pense no número 42. 72 pode ser mais exato.”

“Ao menos você é bem humorada. Não sabia que a Morte tinha tanto senso de humor.”

“Me chame de Sam e garanto que meu humor é de matar.”

Ela pisca para mim e ambos caímos na gargalhada. Isso parece um sonho, mas o fato é que agora eu não quero acordar. Aí ela levanta da mesa e tudo ao nosso redor se torna uma longa estrada pavimentada de tijolos vermelhos, e percebo que cada tijolo possui um nome, talvez de pessoas,onde eu não consigo ver seus dois extremos, mas sei que iremos caminhar.

“Bem, vamos. Temos um longo caminho a percorrer e nesse tempo vamos conversar porque eu preciso te deixar por dentro de muita coisa.”

Nesse exato momento ela fica diante de mim e me lança um sorriso torto. E como num passe de mágica, duas asas se abrem mostrando sua envergadura, mas não são por penas que elas são formadas e sim por dezenas, centenas de olhos. Globos oculares dentro de pálpebras que piscam, de todas as coes e etnias. Todos olhando para mim e me encarando. Mas então percebo que um deles, bem perto da cintura dela, de Sam, está fechado. Do meio de tantos olhares eu consigo ver apenas esse que permanece fechado e pergunto:

“Por que esse olho tá fechado?”

“Porque ele é você.”

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