Caminha pela rua e, antes do bar, se depara com uma vitrine onde se
ergue um espelho enorme. Para. Olha para si mesmo e pensa por um
momento o quanto é raro as pessoas, em locais públicos, se vislumbrarem
em espelhos, tendo a ideia de como os outros as veem. Reconhecer a si
mesmo e depois, ao sair diante da imagem, voltar à nossa prisão interior
e ter apenas o sentido e a imagem distorcidos por nós mesmos.
Entra
no bar e pede um shot de whisky. Tira o celular do bolso para
depositá-lo no balcão, sem mexer, e olha para as fotos antigas
espalhadas na parede iluminada pela luz fraca e amarelada que vem do
teto.
"Você lembra de como era o seu cérebro antes da internet? Você sente saudades de seu cérebro pré-internet?"
A
voz, rouca e pausada, vem do seu lado, de um senhor usando boné e uma
barba que chega até seu peito, grisalha e amarelada no meio. Tem na mão
um copo de conhaque e fuma um cigarro negro.
"Perdão?"
"Você entendeu o que eu disse. Basta responder."
"Bem, nunca pensei sobre isso."
"Aí é que está o problema, não é? A gente não pensa mais muito sobre nada."
O
sorriso torto não parece ter tido efeito com o velho, então bebe
rapidamente o shot e pede mais um. Sente alguma vergonha e não sabe o
que falar agora, implorando que o senhor diga algo. Tamborila os dedos
no balcão.
"Sabe, os livros roubam
você de si mesmo sem que você perceba. Eles se apropriam de sua voz
interior e te fazem esquecer um pouco de si para viver uma outra vida, a
vida de outro. É como uma possessão."
Bebe
rapidamente o outro shot. Não faz ideia do que tem a ver essa segunda
reflexão com a primeira, mas o fato é que o que o velho diz lhe faz
total sentido. Ainda está se recuperando da primeira sentença. Pensa na
verdade contida naquelas frases e tenta lembrar de alguma forma como era
seu cérebro pré-internet. Imagina que uma preguiça se apoderou de seus
pensamentos.
"O senhor é escritor?"
Arrepende-se
da pergunta no mesmo momento em que o velho lhe lança, de soslaio, um
olhar fulminante. Engole em seco, a garganta arranhada pelo whisky e faz
sinal para o barman trazer mais um shot. Bebe rapidamente e já pede
outro. O velho ainda o olha.
"Acha que precisa ser escritor para se pensar de forma lúcida?"
"Não, senhor, de forma alguma, é que..."
"O que?"
Engasga
com o shot e pede ao garçom que traga mais um. Então o velho sorri. Há
algo de nevoento em toda essa situação. Uma música toca vinda de algum
lugar distante, em tom baixo. Perde a conta de quantos shots já tomou.
As coisas estão ficando distantes, então morde a língua.
"Deixa eu te dizer uma coisa, meu jovem."
Espera
uma bronca. Até agora não está entendendo nada do que acontece. O eco
da primeira frase ainda ressoa no seu crânio e as considerações sobre a
segunda começam a ser mastigadas. E se os escritores forem tipo médiuns?
Quem sabe na verdade o que eles fazem é ser possuídos por espíritos de
mortos e escrever vidas passadas ou acontecimentos em terras ou planetas
distantes. Será? Para de ruminar isso tudo até ouvir a voz idosa
novamente.
"Você acredita em alma?"
Mais
uma pergunta que não faz muito sentido. Bebe mais um shot e olha
seriamente para o velho, que dá longas baforadas no cigarro negro.
"Sim, eu sei que tenho uma alma. Sei porque ela dói."
Deposita
o cigarro no cinzeiro e bebe sofregamente todo o copo de conhaque. Vira
o corpo todo em direção ao jovem à sua frente e fala em tom imperioso.
"Esqueça
a alma. Preocupe-se com o corpo. Você é jovem e o que sente é que a
vida ainda não começou. O que você acha é que sua vida está programada
para realmente começar ou dar certo daqui a uma semana, um ano, uma
década, na segunda ou após as férias. Mas você chegará na minha idade e,
vendo que essa vida agendada nunca chegou, se perguntará 'O que eu
estive fazendo esse tempo todo?'. Você nunca sabe quando pode ser tarde
demais."
Bate o copo no balcão e caminha lentamente em direção à saída.
Sorri sem entender muito e chama o barman. Pede mais um shot e recebe um olhar de reprovação do homem alto e de bigode.
"Acho que o senhor já bebeu demais, amigo."
"Ué, mas por que? Eu estou me sentindo muito bem."
"O senhor está falando sozinho."
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Hemerson Miranda
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