Aos
11 anos eu tive um amigo na escola a quem eu contava tudo. O que me
intrigava era ele ainda querer continuar meu amigo depois de tudo o
que contei. E naquela época eu parecia ter muita coisa para contar.
Contei
que aos nove anos, depois de tomar banho com minha mãe, o que era
costume em nossa casa, eu ia para o meu quarto e ficava brincando com
meu pinto lembrando dela pelada.
Contei
da perna que esmaguei de um gatinho com um tijolo quando eu tinha dez
anos e em como os gritos de dor dele não mexeram nem um pouco
comigo.
Contei
que cheirava algumas calcinhas e sutiãs da minha irmã que na época
tinha 18 anos quando ela as deixava no banheiro depois do banho.
Contei
que lambia algumas páginas das revistas de mulher pelada que meu pai
guardava no fundo da última gaveta da sua cômoda.
Contei
da vez que vi minha irmã roubar 50 reais da carteira do meu pai e
depois ter dito que ele deveria ter esquecido no bar com seus amigos
bêbados.
Contei
da vez que estava com vontade de mijar de madrugada e vi, quando
passei pelo quarto dos meus pais, pela porta entreaberta, eles
trepando e meu pai enforcando o pescoço de minha mãe com as mãos.
Contei
do passarinho que vi agonizando no pátio da escola e como acabei com
o sofrimento dele com um cabo de vassoura.
Nessa
época eu estava na quarta série. No ano seguinte ele e eu
estaríamos novamente na mesma escola para enfrentar a quinta série.
Mas
ele não apareceu.
A
mãe dele me disse que um carro o havia atropelado. Suas vísceras
ficaram jogadas no asfalto e a mancha de sangue ainda estava lá para
confirmar.
Aos
16 anos eu tive uma namorada que me inspirou tanta confiança que eu
não escondia nada dela. O que novamente me intrigou foi ela saber de
todas as coisas que eu fiz quando criança e ainda assim ela
continuar querendo me namorar.
Falei
a ela do meu desejo de ser especialista em autópsias e que não era
tanto o salário que me chamava atenção, mas a oportunidade de
poder ver o corpo em decomposição.
O
futuro que aguarda todos nós.
Falei
do ódio que eu tinha por pessoas preconceituosas. E do meu ódio por
todo tipo de preconceito.
Falei
do meu prazer em ler Schopenhauer, não apenas pelo pessimismo que
permeia suas palavras, até porque não me considero um pessimista,
mas por ele mostrar tão claramente o quão miserável é a natureza
humana.
Falei
para ela dos meus desejos pervertidos na hora do sexo.
E
ela aceitou.
Falei
da vontade que eu tinha dos fluidos dela. Da reciprocidade que eu
queria e que lhe daria na hora de trepar. De querer que ela me
fizesse fio-terra.
Falei
da vez que cheguei a pegar um martelo para bater na cabeça do meu
pai quando, nos meus 14 anos, ele deu dois tapas fortes na cara da
minha mãe por ela ter chegado um pouco tarde em casa. Mas minha irmã
pegou o martelo da minha mão.
Falei
para ela que eu tinha certo desejo de incesto com minha irmã, antes
de conhecê-la.
Falei
também que eu gostaria de ver ela e minha irmã transando.
Falei
do meu desespero quando via imperfeições em ladrilhos de cores
diferentes. Da minha angústia ao ver quadros meio inclinados. E do
som irritante das pessoas que tamborilavam os dedos em qualquer
superfície.
Então
um dia decidimos ir até um parque no domingo. O que aconteceu foi
que ela estava correndo atrás de um balão e de repente tropeçou.
Seu corpo foi jogado para a frente com força e sua cabeça bateu na
perna de ferro de uma mesa que estava inclinada em cima de outra,
perto de umas barraquinhas de cachorro quente. A perna perfurou seu
olho e algumas pessoas ficaram meladas de sangue e molho de tomate.
Ela
morreu ali mesmo.
Aos
23 anos eu precisava a cada dois meses me consultar com meu
fisioterapeuta, depois de ter retirado os pinos da perna. A simpatia
dele me fez abrir meu coração. Ele demonstrava tanta atenção que
cada consulta era como deitar-me no divã.
Eu
disse da minha predisposição ao álcool. Disse da vontade que eu
tinha de dormir uma noite e não acordar. Do desejo de morrer sem
sentir nada.
Eu
disse que a mentira que eu conto a todo mundo é que eu caí das
escadas. A mentira que eu digo a mim mesmo é que tenho coragem
suficiente para enfrentar meu pai. Mas o que realmente aconteceu foi
culpa dele.
Eu
disse dos pequenos roubos que cometia nos supermercados. Você pega
um refrigerante na geladeira, algumas fatias de queijo, algumas de
presunto, alguns pães quentinhos na padaria, um pudim para a
sobremesa e se dirige à área de alimentação. Se alguém perguntar
você diz que está comendo ali porque não quer comer lá fora e
daqui a pouco precisa voltar ao trabalho. Diz que assim que terminar
você levará as embalagens com os preços até o caixa. O que você
faz depois de comer, na verdade, é jogar tudo no lixo e ir embora.
Já
fiz as três refeições do dia assim.
Eu
disse que um dia cheguei em casa do trabalho e vi minha mãe acuada
no canto da parede com sangue escorrendo pelo nariz. Meu pai estava
de pé diante dela e olhou para mim ameaçadoramente. Eu disse que
parti para cima dele, mas eu sempre fui magro e foi fácil para ele
me imobilizar. E quebrar minha perna.
Eu
disse da minha irmã que saiu de casa para viver com o namorado em
outra cidade. E que eu sabia que na cama ela não aprenderia nada com
esse cara que meu pai já não a tivesse ensinado.
Eu
disse que minha mãe suplicou para que eu dissesse que havia sido um
acidente. Que eu e ela caímos da escada. Que nada tinha a ver com
meu pai.
Esse
era o nível do quanto ela gostava dele.
Eu
disse da namorada, que eu tive aos 20 anos, que me abandonou para
ficar com sua vizinha e da vez que as encontrei na cama dela, juntas,
fazendo você sabe o quê.
Eu
disse da saudade que sentia da minha irmã e da paixão que começou
a aumentar por minha mãe. No mesmo grau que aumentava o ódio por
meu pai.
Então
em mais um dia de consulta eu cheguei na hora marcada e o meu
fisioterapeuta não estava lá.
Lamento
não termos avisado antes, mas a consulta foi cancelada por hoje,
pois ele foi encontrado morto em seu apartamento devido a uma
overdose, a recepcionista me disse.
E
eu parei de frequentar aquele lugar.
Aos
35 anos eu tive a oportunidade de ter um psicólogo. Uma vez por
semana, durante uma hora, eu me consultava com ele. Aí estava mais
uma chance de me abrir para alguém. Seriam 15 anos encarcerado numa
prisão, então era melhor ter alguém para me ouvir ao menos uma vez
por semana.
Ele
ouviu sobre meus gostos musicais. Ele me ouviu dizer que o que eu
achava que acontecia atualmente era que as pessoas não escutavam
mais músicas, elas escutavam cantores ou bandas. E se você não
curtisse o mesmo que elas, você era um idiota.
Ele
me ouviu dizer que a música deixou de ser ouvida. O bom e velho
rock. O fascinante jazz. Agora ouviam qualquer coisa achando que é
um estilo. Ele me ouviu dizer que eu não entendia as pessoas.
Ele
ouviu quando eu falei do meu Complexo de Édipo. Ouviu que as coisas
na casa da minha mãe estavam piorando. Ouviu que eu pedi para ela
vir morar comigo em meu apartamento, mas ela se recusou. Preferiu
ficar do lado do homem a quem ela ainda dizia ser meu pai.
Ele
ouviu do caixa 2 que eu fazia na loja onde trabalhava. Era apenas eu
tomando conta daquilo. Uma empresa pequena. Eu, como consultor de
vendas. Era fácil no final do dia retirar uma grana sem precisar
registrar ela. Além das cápsulas de cafés caros e importados que
eu levava para casa na mochila.
Ele
me ouviu quando falei que sai correndo com minha moto para a casa da
minha mãe depois de ela ter me ligado chorando pedindo que eu fosse
rápido para lá. Isso antes de a ligação cair. Isso antes de meu
mundo cair.
Ele
me ouviu dizer que a namorada que eu tive e que havia me trocado pela
vizinha agora traia ela comigo.
Ele
ouviu quando eu disse trêmulo que quando cheguei na casa da minha
mãe e estava abrindo a porta o meu pai saiu por ela e me empurrou. E
foi fumar no jardim da casa. Eu subi as escadas que davam até o
quarto dela e o que vi foram os lençóis da cama tingidos de
vermelho por causa do sangue que jorrou do seu pescoço.
Ele
ouviu que eu comprara uma arma depois de ter sido assaltado pela
quarta vez. E que eu treinava tiros na fazendo de um tio durante os
finais de semana.
Ele
me ouviu dizer que eu desci as escadas e fui até o jardim. Aquele
homem estava sentado na cadeira de balanço fumando um cigarro como
se nada tivesse acontecido.
Ele
ouviu da minha boca as palavras de meu pai:
“Vá
embora daqui, seu filho da puta veado. Aqui não tem nada para você.”
Ele
não ouviu, mas eu sim, os três tiros que dei na cabeça do meu pai.
Ele
me ouviu dizer que eu levei o corpo dele para dentro de casa e sentei
ele na poltrona. Fui para a cozinha e preparei pipoca no micro-ondas.
Procurei entre os DVDs o filme O Mentiroso, com Jim Carrey. Eu sempre
ri muito com Jim Carrey. Então assisti o filme sentado ao lado da
carcaça sem vida do meu pai, com uma parte de sua cabeça pendendo e
alguns miolos à mostra, quase da cor da pipoca amanteigada que eu
comia.
Quando
o filme terminou eu liguei para a polícia.
Ele
me ouviu dizer que a maioria dessas coisas eu não havia contado à
polícia, mas só a ele. Pois eu confiava nele. O psicólogo era uma
pessoa com quem eu gostava de conversar.
O
que aconteceu foi que um tempo depois, no dia marcado para a
consulta, apareceu uma psicóloga. Perguntei o que tinha acontecido
com meu psicólogo. Vocês não podem mudar assim as pessoas sem me
contar, eu falei.
O
que eu ouvi foi que ele havia sido morto. A mulher dele o encontrara
com sua irmã saindo de um motel. Depois de muita briga, durante a
noite, com ele dormindo no sofá apenas por aquela noite, ela amarrou
as mãos dele, pôs um saco plástico em sua cabeça para asfixiá-lo,
mas antes de ele entregar a alma ela decepara o pau dele com a faca
da cozinha.
Ai
eu cancelei minha consulta com a psicóloga. Para sempre.
O
que eu percebo é que me dá certa alegria em saber que a pessoa que
sabe todos os seus segredos morreu. Meu amigo, minha namorada, meu
fisioterapeuta, meu psicólogo.
Todos
eles sabiam mais de mim que qualquer pessoa nesse mundo. E agora
estavam mortos e enterrados com os meus segredos.
Parece
que todas as pessoas que puderam me conhecer por completo estavam
fadadas a morrer da pior maneira.
Então
eu cansei de contar as coisas às pessoas e decidi fazer isso apenas
mais uma vez. Uma última vez.
Agora.
Para
você que está me lendo. Você que leu tudo sobre mim. Meus
segredos.
Agora
eu só posso te desejar uma coisa:
Boa
sorte.
Hemerson Miranda
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