Esse conto é dedicado a Betina Pilch
***
Você está sentado(a)?
Bem, não importa. Em pé
ou sentado uma hora ou outra a gente cai. Dentro de si mesmo.
A cena que você precisa
imaginar é de duas mulheres com cabelos vermelhos se atracando. Uma delas, eu
não estou vendo muito bem qual delas, ela está com as duas mãos no pescoço da
outra, apertando, vendo a vida deixar lentamente os seus olhos.
Eu as conheci há alguns
anos. Desculpem, minha memória me falha um pouco, então não sei precisar se
conheci as duas no mesmo momento ou uma de cada vez. O que eu consigo me
lembrar é da primeira. Eu as chamarei de B e Bê. Elas tem nomes parecidos, o
que é comum quando são gêmeas. A Bê, ela é a mais extrovertida. Isso também me
parece comum. Quando são dois irmãos um tende a ser mais introvertido que o
outro, então existe sempre essa diferença, em que você reconhece um dos dois
pelo jeito e não pela aparência.
Eu não gosto muito
disso, dessa coisa de yin e yang, desse jogo binário em que só existem dois
lados de cada coisa. E talvez essa história venha justamente mostrar o erro
disso tudo.
Imagine que você está,
depois da aula, com o professor e colegas de sala bebendo no bar. Essa moça,
ela está descendo o pau na filosofia, ela diz que Sócrates era um lerdo, que
Sartre tinha probleminha e no minuto seguinte ela está dançando com o poste do
outro lado da rua. Essa é a Bê. É assim que ela é, é assim que o mundo dela
funciona.
Um dia ela me chamou
para beber. Enquanto eu estava na terceira latinha ela já havia virado um litro
de vodka. O que você vai prestar atenção, claro, além do farto par de seios que
saltam e te encaram, além da longa cabeleira vermelha, aquela cascata rubra de
mechas, e da voz rápida, apressada, atropelada, é que, entre as palavras
ininteligíveis, uma inteligência emocional se destaca. Claro, você vai perceber
isso quando deixar de olhar para o decote.
Você tem que pensar em
cachorrinhos atropelados, pense em pombos esmagados na rua, pense em erupções
na pele e seu pus amarelado, isso tudo para não se excitar olhando os seios
dela. Ou as coxas. E torça para ela não virar as costas.
O contraste do vermelho
de seu cabelo e de seus grossos lábios de boneca com o negro de suas roupas,
você até precisa pensar em outras coisas para não ficar babando, mas você não
consegue. Sabe a história bíblica da mulher esmagando a cobra? Então, você é a
cobra.
Eu sempre escrevi
coisas mais sombrias e foi nessa época que conheci a B. Eu estou ali na
biblioteca, mas apenas na acepção física. Minha mente está em outro lugar.
Então ela, essa moça vem com suas roupas de cores chamativas e meio que me
cerca. Eu sinto que estou sendo observado, sinto que ela quer se aproximar, mas
não consegue, eu então vou até uma estante do lado dela e pego um livro. O
livro, ele tem o nome dela na capa. A foto na parte de trás do livro é como se
tivesse sido tirada ali naquele momento, o rosto cintilante emoldurado pelo
oceano vermelho.
“Posso aproveitar e te
pedir um autógrafo?”
Quando eu estendo o
livro para ela, a reação primária é se afastar. Mas ela me encara e responde
que sim. Responde que inclusive queria saber se eu era mesmo o autor daqueles
textos, e me mostra um tablet com alguns contos meus. É de um tumblr que eu
mantenho, com contos e links para outros contos que escrevo em um blog sobre
literatura.
Acabou que estávamos
numa parte da biblioteca mais solitária, bem, era a parte de administração,
claro, só nós dois e vimos que admirávamos a escrita um do outro, sem nunca
termos entrado em contato.
Claro que a semelhança
delas, isso me chamou muito a atenção. A B possuía a mesma volúpia da Bê, em
cada um de seus atos e, apesar da primeira possuir mais cor que a segunda, a B
sempre parecia mais apagada.
A aparência dela era
sempre de algo se diluindo. Algo se apagando, algo como o gelo derretendo e se
mesclando ao whisky.
Havia uma tristeza em
cada ato seu, em cada palavra. E por causa disso eu nunca perguntei se ela
tinha uma gêmea. A tristeza dela era contagiante, tanto que o peso em sua
presença me pesava também.
A Bê, e esse é o
contraste cinza das coisas, ela sempre veste preto. Roupas escuras e soturnas,
elegantes e hipnotizantes. Sua pele branca, pálida, a boca de batom vermelho,
contrastando com o breu de suas vestes, faz Poe se remexer no túmulo ao pensar
nela como a mais mórbida das belezas, que é a morte de uma mulher bonita.
Já a B, por outro lado,
as cores nas roupas dela me parecem pensar em banheiros com os frascos e caixas
de remédios. Suas blusas azuis Valium, o vestido vermelho Darvon, o sutiã creme
Aldactone, a calcinha rosa Estinyl. Suas roupas parecem cascatas de Percodan e
Darvocets.
Com a Bê eu poderia
pegar o celular e brincar de fotógrafo de modelo.
Era eu gritando:
“Quero sensualidade,
gata!”
Flash.
“Quero essa boca
vermelha.”
Flash.
“Quero a indiferença
pessimista de Schopenhauer.”
Flash.
Já com a B as luzes se apagavam.
Na presença dela parecia haver uma multidão gritando ao longe, desesperada,
como vozes queimando no inferno. E essa presença pesava de um jeito que seus
ombros arqueavam, que meus ombros cediam, você se curvava, como se curva
inconsciente ante algo muito forte. E esse algo era a tristeza. Certos alces,
antigamente, desenvolveram galhadas tão enormes que o peso delas os faziam
curvarem-se até o cansaço os vencer por completo e eles entrarem em extinção.
Isso fazia parte da evolução. Essa era a galhada magnífica e bela da B.
Eu bebo, então eu
esqueço das coisas e aproveito para usar isso como desculpa sempre que posso,
mas só lembro uma vez de ter visto as duas juntas. Ou era minha visão dupla por
causa etílica. Elas se aproximam, as supremas rainhas de pernas grossas e
lábios carnudos. As saias tão apertadas que as bundas tem o formato de coração.
Afastando-se, uma em
oposição à outra, B começa a chorar, como se chorar alguma vez resolvesse
alguma coisa.
Eu digo a mim mesmo que
aquela trança vermelha que jorra de um buraco na têmpora da Bê, não é sangue e
que ela não está cambaleando.
As duas vão se
afastando uma da outra e depois param. E voltam, uma para perto da outra,
devagar, devagar até a imagem das duas fundirem-se numa só, até minha visão
estabilizar e diante de mim vir aquela mulher com lágrimas jorrando no rosto e
sangue jorrando da cabeça.
Isso não está
acontecendo. Na verdade isso não pode estar acontecendo, porque minha agenda
diz que a essa hora eu deveria estar escrevendo um TCC, não numa mesa comendo
uma lagosta. E não, muito menos minha agenda diz que eu encontraria a B, ou a
Bê, eu realmente não sei o que está acontecendo, ela não deveria estar na minha
agenda chorando e com sangue se misturando a seus cabelos vermelhos.
Ela senta à minha
frente e eu a encaro. Nós nos encaramos. Para cortar esse silêncio, o que eu
faço é pegar uma das garras da lagosta e chupo, eu como a carne lá de dentro.
Olhando pra a Bê, ou a B, eu envergo a lagosta e a cauda dela se desprende de
seu corpo. Com um garfo na boca eu puxo a cauda, a ponta da cauda e depois uso
o garfo para tirar a carne lá de dentro.
Faço isso olhando para
a B.
Isso olhando para a Bê.
Olhando para as duas.
E para nenhuma.
O garfo, eu falo para
ela, eu falo de boca cheia, o garfo tem que ser esse de três dentes e pequeno,
que é o garfo para frutos do mar. Com a boca cheia eu pergunto o que ela fez.
Ela apenas me encara. Aqueles olhos enormes e hipnotizantes. Pra evitar uma
ereção eu penso na veia intestinal ao longo do comprimento da cauda, penso nela
grossa e escura, cheia de esterco.
A B, ou a Bê, ela
apenas entreabre os lábios vermelhos, úmidos, mas não sai som, nem de suspiro.
Então eu removo do corpo a concha dorsal e como o fígado, aquela glândula
digestiva esverdeada.
"Eu tentei me matar."
Aquele lodaçal branco,
que é o sangue coagulado, eu como. Eu como os ovos cor de coral.
"Mas eu não
consegui. "
Eu lambo os dedos
depois de comer os esponjosos pulmões.
"Porque ela não
deixou."
Eu remexo dentro do
corpo. Chupo a carne de dentro das pernas, arranco as guelras.
Então agora só o que eu
ouço é o som do meu próprio batimento.
Hemerson Miranda
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