Durante
oito anos Júlio foi humilhado por Giovanne no colégio. Não sofria agressões
físicas, mas enfrentava piadinhas, gozações e chantagens. Piadinhas pelo seu
jeito tímido e franzino, os seus óculos fundo-de-garrafa, os dentes superiores
maiores e as orelhas de abano. Tudo isso lhe rendia os apelidos mais variados:
Florzinha, Pulguinha, Cientista Maluco, Dentinho, Abridor de Garrafa ou de Lata,
Dumbo e Orelhão Telefônico. Gozações quando tropeçava e caía no meio da rua ou
acabava fazendo xixi nas calças na primeira série. E as chantagens eram sempre
para obter algum lanche, uma cola ou mesmo dinheiro. Uma vez Giovanne inventou
um empréstimo inexistente que Júlio teria feito com ele para comprar uma
merenda no recreio. Deu um prazo de duas semanas para receber o pagamento com a
grave ameaça de morte e desova na vala. Qualquer reação do pobre menino era
neutralizada com uma nova chantagem.
Giovanne
era muito mais alto e forte do que Júlio. Parecia derrubar qualquer coisa com o
mínimo esforço. Tinha cabelos louros raspados com máquina quatro. Por isso
Júlio tinha muito medo. Os seus coleguinhas também. Exceto Mário, tão forte e
mal-encarado como Giovanne, porém um amor de pessoa. Ele sempre defendia o
amigo mais novo e ingênuo das provocações do colega de sala mau-caráter.
—
Por que não procura alguém do seu tamanho, imbecil? Dizia Mário quando Giovanne
vinha com ameaças.
—
Então venha, reagia Giovanne.
E
os dois valentões chegavam às vias de fato. Mário se prejudicava por causa
disso. Por pouco não foi expulso da escola. Só não aconteceu porque, além de
ser um aluno exemplar, foi defendido por Júlio na frente da rigorosa diretora.
O tímido menino se comportou como um grande advogado, dizendo que as brigas eram
em sua defesa. Como punição, Júlio e Mário ficaram apenas estudando duas horas
depois da aula.
Giovanne
nunca era punido porque diziam que o seu pai subornava a diretora. A família
era muito rica, mas todos desconheciam a origem de sua renda. Todo mundo
especulava que o pai seria traficante de drogas, dono de cassino clandestino,
político influente ou mesmo um empresário honesto com medo de olho grande.
O
tempo passou. Vinte e cinco anos depois, Júlio tornou-se um respeitado advogado
(profissão que escolheu na época em que defendeu o amigo valente), com muito
dinheiro que ganhou em suas causas vitoriosas. Casou-se com Rebecca e teve um
filho que batizou de Mário em homenagem ao seu herói dos tempos do colégio, que
virou policial militar, mas levou um tiro durante uma ação contra traficantes e
ficou paraplégico.
Um
dia. Júlio se lembrou de Giovanne. Imaginou que, apesar de ter sofrido muito
com ele na escola, o inimigo deve ter se regenerado e se tornado um homem
honesto e respeitável. Contou para a esposa - que desconhecia o brutamontes, pois
conheceu o marido apenas na faculdade - que sonhou com o inimigo de infância. E
no sonho foi surrado por ele.
Religioso,
Júlio acreditava piamente que Giovanne virara um homem normal. Para eles, todos
têm direito a uma segunda chance. Por isso, iniciou uma busca por notícias do
ex-desafeto. Queria encontrá-lo e até se desculpar por supostamente tê-lo
chateado. Ou então ouvir, sem querer cobrar, um pedido de desculpas e
justificativas pelas ameaças que sofria. Sonhou com uma amizade madura e até
uma parceria nos negócios. Desejou rir de todas as brigas que tiveram no
passado.
—
Você está louco, querido? Levava surra... Questionava Rebecca, estranhando a
decisão do marido, antes de ser interrompida por Júlio.
—
Não. Eu nunca apanhei dele.
—
Mas você não acabou de dizer que levou uma surra dele?
—
Eu SONHEI que levei uma surra dele.
—
Mesmo assim. Você já me contou que ele te humilhava, chantageava e ameaçava.
—
Isso foi há vinte e cinco anos atrás, Rebecca. Hoje ele já é um homem feito. Você
está sendo preconceituosa.
—
Se ele já fazia tudo isso naquela época, imagina hoje? Eu não vou deixar você
procurar esse cara! Nós temos o Mário para cuidar e eu ainda sou muito nova
para ficar viúva. Promete que não vai procurar esse homem?
Júlio
levantou-se da mesa do café sem dar resposta. Despediu-se do filho que ainda
dormia e foi para o escritório. Em seu notebook acessou a internet e procurou por
Giovanne Ribeiro Tagliarine, que era o nome completo do seu inimigo. Não achou
nada. Entrou em uma rede social e também nada encontrou.
Na
verdade, só localizou dois ex-colegas do primeiro grau: Luciano, um rapazinho
tímido, que também era provocado por Giovanne, principalmente pelo seu jeito efeminado,
e Natália, a menina por quem era apaixonado na época. Mandou e-mails para os
dois.
Horas
depois, o primeiro respondeu que formou-se em jornalismo e assumiu a sua
homossexualidade. Não sabia de Giovanne e nem queria saber. Tinha trauma dele.
Já Natalinha não tinha notícias do bad boy do colégio há anos, mas deu um
conselho de amiga, pelo bate-papo:
—
Esquece esse cara, senão você vai se arrepender. Ele é um bandido. Vai por mim.
Em
vez de sentir medo, Júlio encorajou-se ainda mais. Estava cego de esperanças em encontrar Giovanne
regenerado. Aliás, não era mais esperança. Já se tornara uma obsessão reencontrar
o cara que o humilhou por oito anos.
Júlio
contratou um detetive que estudou com ele na faculdade para descobrir o
paradeiro de Giovanne. Um mês depois, recebeu um dossiê: Giovanne Ribeiro
Tagliarine é filho de uma brasileira, Genilce, com um italiano, Pietro,
empresário condenado por contrabando, tráfico de drogas, homicídio, formação de
quadrilha, falsidade ideológica e corrupção. De Giovanne só conseguiu a
informação de que ele fora condenado na juventude por tentativa de homicídio e
lesão corporal contra um pedreiro que dormia na rua. Ficou seis meses preso.
Mas logo ganhou uma condicional. Atualmente administra uma fazenda no pantanal.
Júlio
agora se convenceu. De que Giovanne virou um próspero e pacato fazendeiro,
descansando no interior da violência da cidade grande.
Chegou
em casa, arrumou as malas e, com o endereço da fazenda de Giovanne nas mãos,
partiu de avião do Rio para Campo Grande, onde pegaria uma chalana para a
fazenda. Mentiu para a esposa porque, com certeza, ela faria um escândalo
dramático e o impediria de viajar e encontrar o ex-inimigo. Avisou apenas que
foi para Brasília a trabalho, sem dizer o motivo
Júlio
não mostrou e nem comentou sobre o dossiê para ninguém. Mas esqueceu em casa e
a primeira a ler o material foi Rebecca, que logo percebeu que a pasta não era
nenhuma petição. Desesperou-se. Deixou o filho na casa da mãe e correu atrás de
Mário, o verdadeiro amigo de infância do marido.
—
Mário, você precisa me ajudar! O Júlio enlouqueceu e viajou para o Mato Grosso do
Sul para encontrar aquele monstro que o humilhava na infância.
—
Me desculpe, Rebecca. Gosto muito de vocês, mas eu não vou poder ajudá-la.
—
Como não???? O Júlio está correndo muito perigo. Eu achei um dossiê sobre esse
tal de Giovanne. O cara é um bandido. Foi condenado por agressão quando jovem.
É filho de um mafioso.
—
Eu estou sem falar com ele há três anos. Desde quando ele começou a dizer que
queria encontrar esse cara.
—
Mas só tem um mês que ele está com essa paranóia. Ele começou a falar disso ao
me contar um sonho que teve com o tal de Giovanne que ainda o surrou.
—
Só tem um mês que ele te conta, né?
Depois
de duas horas de viagem desde o aeroporto da capital sul-matogrossosense, Júlio
chegou à fazenda. Não era uma simples fazendinha do interior. Era um latifúndio
de um verde que doía os olhos. O pasto por onde circulavam vacas holandesas e
bois zebus era tão bem aparado que parecia ser de veludo. Do outro lado do
portal de mármore com portas de mogno, havia um haras com dez cavalos
puro-sangue e a mansão de quinze quartos e vinte e cinco cômodos.
Mas
Júlio não chegou a conhecer. Foi recebido por três parrudos seguranças vestidos
com terno e gravata de primeira linha e esporas nos sapatos. Foram as últimas
pessoas que viu antes de ser acordado na enfermaria da fazenda por um coroa gordo,
de cabelos brancos, rosto bastante enrugado, olhos verdes e corpo forte vestido
com um terno de linho impecavelmente branco.
Ainda
sentia o gosto enferrujado do sangue na boca quando ouviu:
—
Por que não disse antes que era você, Júlio? Meu velho amigo de infância!
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