O casal Drähm chega a um
restaurante na Barra da Tijuca uma hora depois do combinado com os amigos Klaus
e Karine Smirnoff. Envergonhado com o atraso, Benvindo se desculpa aos dois
amigos:
— Pô, gente! Vocês me
desculpem. Meu carro enguiçou e tivemos que vir de ônibus. No caminho pegamos um
engarrafamento monstruoso.
— Ah, mas vocês vieram,
não é verdade? Perdoa Karine.
— Sentem-se aí, eu vou
pedir um drink para a gente. Nós chegamos faz
meia-hora. Diz Klaus.
— A gente não teria
enfrentado esse engarrafamento e chegaríamos bem mais cedo se a minha querida
parceira não inventasse de se enfeitar toda para vir pra cá.
— É verdade, pessoal. Mas
eu gosto de me arrumar e ficar bem bonita. Não sou como certas pessoas que saem
por aí de camisa amarrotada, colarinho sujo e desodorante vencido. Justifica Derlaine.
O casal Smirnoff se
entreolha com cara de nojo. Benvindo
esclarece:
— Não tenho culpa se o
desodorante vence antes de encerrar o expediente de trabalho, né?
Principalmente o trabalho duro como o meu de ficar fiscalizando o movimento da
livraria (tanto pessoal quanto financeiro). Aliás, ele já está vencido antes de
chegar ao trabalho, pois a gente vive numa cidade quente, mas tem que andar
sempre bem arrumado, passa horas no banco do carro preso no engarrafamento e ao
cinto de segurança que amarrota a roupa enquanto a sua esposa está em casa
gastando luz com o ar condicionado e de pernas pro ar.
— Não. Não é bem assim. Realmente
a gente vive numa cidade quente. E é por isso que eu ligo o ar condicionado no
início da tarde, pois eu estou morta de cansaço depois de um dia inteiro na
cozinha e na área lavando e passando roupa, já que o patrão dispensou a
empregada para economizar. Só não economiza pra outra e no futebol com os
amigos. No Maracanã é todo domingo e toda quarta à noite. E ainda tenho que cuidar de um menino mimado,
uma solteirona de trinta anos imatura e uma mulher que vive discutindo com o
marido.
— Com tanta dureza no trabalho a gente tem que
se divertir, né? Mas eu me divirto com qualquer um: amigos, filhos, sozinho. Eu
chamo a esposa para relaxar também, mas ela não quer. Fica de frescura. Mesmo
assim, essa diversão dá muita despesa. É filho criança, é sonho da filha do
meio querer ser escritora, é filha mais velha pedindo dinheiro emprestado para
saldar as dívidas do marido. Lá em casa a gente precisa cortar alguns gastos
desnecessários: a tv a cabo nós reduzimos o pacote, lanches fora de casa nós
cortamos, economizar na luz, no telefone, luz, água, brinquedos só no
aniversário do menino.
— Meu marido é mesmo muito
econômico. Tão econômico que não troca nem o carro 1.0 que não tem ar
condicionado e fica com aquela coisa velha enguiçada na garagem. E ainda sai
com qualquer um. Se bobear tem qualquer uma.
Klaus interrrompe a
discussão sutil do casal Drähm e propõe:
— Amigos, a conversa está
tão agradável, mas vamos pedir o nosso prato, né? Afinal viemos aqui para
comer.
— Claro. Você já decidiu o
que vai pedir, Derlaine?
— Já.
Durante o almoço, os
casais voltam a conversar. Retomam o assunto. Desta vez é Karine quem lembra
que os amigos vieram de ônibus.
— O ônibus em que vocês
vieram estava muito cheio?
— Lotado. Responde
Derlaine.
— Por que não vieram de
táxi?
— Fazer o quê? O senhor
economia precisa conter as despesas, né?
Antes de Benvindo dar a
sua resposta Klaus sai em sua defesa:
— Karine, que mal tem eles
virem de ônibus? É melhor pagar cinco reais no ônibus executivo do que pagar 40
de táxi.
— Ah! Economia é com o meu
marido mesmo. Só que naquele dia a gente foi de lotação.
— A gente estava atrasado.
— Atrasado ao meio-dia
para comprar eletrodoméstico numa loja que fecha a noite?
— Você sabia muito bem que
na liquidação a concorrência era grande. Tinha que chegar bem cedo mesmo.
— Ah é! Vocês acreditam
que o Klaus me fez ir até o subúrbio só para comprar uma televisão de plasma
porque achava que tinha 90% de desconto?
— A gente também foi uma
vez,né Bem? Mas era tudo enganação.
— Pois é. Só o meu marido
e pobre que acreditam nisso. E pobre era o que mais tinha lá. Aliás, tinha uma
favelada folgada disputando uma máquina de lavar comigo. Vai ver não tinha nem
condições de comprar. Conta Karine.
— Gente racista e
preconceituosa é dureza, meus amigos. Essa pessoa que acabou de falar é tão
preconceituosa e arrogante que nem o rapaz do frete que nos levaria para casa com
a maior boa vontade aguentou, e nos expulsou do caminhão dele. Tivemos que
andar da Copacabana até o Leblon a pé. Imagina andar naquele calor com uma
lavadora nas costas. E eu que tive que carregar. Além do aparelho estar com
defeito, fiquei uma semana com dor na coluna.
— Até que o carreteiro
aguentou bastante, diz Derlaine antes de soltar uma gargalhada.
— Mas o seu marido te
aguenta mais, Dedé. Principalmente as suas chantagens emocionais. Responde
Karine. Eu que o diga. E isso desde os tempos da escola.
— Aprendi a fazer isso que
vocês acham que é chantagem com a Karine, que fazia sempre com os meninos com
quem ela ficava no colégio. Ela era apelidada de A Dondoca Mimada de Olaria. Comenta
Derlaine depois de beber um gole de vinho.
— Mas eu era mais popular
do que você na escola. Só não era no seu bairro, pois eu nunca fui apelidada de
A Fera da Penha. Não que você tenha matado e queimado a filha de alguém. Você
só era feia.
Um jato de vinho jorra
sobre o vestido de Karine.
— Ai, me desculpa, minha
querida.
— Pode deixar, eu já ia
comprar outro vestido mesmo.
— Você ainda tem dinheiro
para comprar vestidos caros? Pensei que vocês estavam falindo. Pergunta Benvindo.
— A família Smirnoff passa
por dificuldades, mas ela consegue se reerguer.
É assim desde os tempos do vovô. Ele a minha avó quase passaram fome na
época da Segunda Guerra Mundial. Mas deram a volta por cima, abriram uma
indústria de alimentos que o meu pai herdou e a tornou uma das maiores do país.
Gaba-se Klaus.
— Mas aí o filho torrou
tudo com mulher e farra. E o que sobrou divide com a Karine, que foi a única
mulher que restou. Diz Benvindo, antes de soltar uma gargalhada.
— Pô, Benvindo! Pra que
tanto humor ácido? Você sabe muito bem que eu fui contratado por uma
multinacional, estou montando uma firma de contabilidade e estou atendendo a
sua livraria em processo de falência.
— Gente, mas vocês sabem
que o contribui para a decadência de um negócio é o desvio de dinheiro dos
contadores, das comissões abusivas deles e da inadimplência dos clientes? Tem
uma senhora de origem Smirnoff que comprou vinte livros e deu três cheques
pré-datados sem fundo. Acho que é a sua mãe, não é, Klaus?
O garçom interrompe a
conversa dos casais de amigos:
— Vocês desejam a
sobremesa?
— Você quer, querida?
Pergunta Klaus.
— Não. Estou me sentindo
gorda.
— Então nos traz a conta,
por favor.
— Ok. Diz o garçom.
— Mas eu pensei que você estivesse com
anorexia. Comenta Benvindo.
— Eu nunca tive anorexia.
Eu só não queria ficar pançuda como você.
— Vamos mudar de assunto.
Estamos trocando farpas desde que chegamos aqui. Sugere Klaus. — Como é que vão os filhos? Estão dando muito
trabalho?
— Filho sempre dá
trabalho. Isso a gente tem que se conformar. O Gabrielzinho tá estudando muito,
a Irene está batalhando pra ser escritora e a Tássia está dando duro no Banco
do Brasil e discutindo com o marido dela. Responde Derlaine.
— Por isso que optamos por
não ter filhos. Para a gente criar e depois quando casam ficar servindo de
mediador de briga de casal? E quando eles estão pequenos e começam a ficar
pedindo tudo que veem?
— E ainda tem aqueles que
chegam aos trinta anos e não largam do teu pé e nem do seu dinheiro. Não têm nem competência para batalharem a
vida sozinhos. Completa Karine.
— Mas mesmo assim os amamos e fomos
abençoados. Graças a Deus não nascemos estéreis como algum de vocês. Afirmou
Benvindo.
— Amor, vamos embora? Pede
Karine.
— Não liga pra eles não,
Karine. Você não pode ter filhos, mas podemos ter sexo todos os dias. Você é
muito mais gostosa do que a Derlaine. Nós já ficamos antes de nos conhecermos.
Quando ela começou a falar de filhos eu caí fora.
— Ben, acho que a estéril
é a Karine. O Klaus é impotente, mesmo. Foi bom ele tocar no assunto. Estava
pra te falar isso.
— Sem problemas, meu amor.
Eu também tenho que confessar que já tirei uma casquinha da Karine. O problema
é que ela só tinha casca. Carne mesmo, não tinha nada.
— E você tinha cascão e
gordura demais. Me senti sufocada. Pelo seu peso e pelo mau-cheiro. Completa
Karine.
O garçom traz a conta.
— Gente, temos que ir
mesmo. Hoje teremos um sarau na casa da minha irmã. A conversa estava tão
agradável. Precisamos nos encontrar mais. Se despede, Klaus.
— Nós também, não é
Derlaine? Eu ainda tenho que ir à livraria hoje.
— E eu tenho uma pilha de
roupas das crianças pra passar. Então
até a próxima.
Os casais Smirnoff e Drähm
se despedem. Karine e Derlaine trocam dois beijos no rosto e abraços. Klaus e
Benvindo trocam abraços e apertos de mão. Saem do restaurante sem pagar a
conta.
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