— Amor, me dá um
ósculo?
— Não.
— Por favor,
Benzinho?
— Agora não posso,
Dedé. Estou tentando fazer uma conta que não está batendo com a féria do dia. Depois eu te dou.
— Eu quero agora!
Benvindo se
estressa e grita:
— Porra, Derlaine!
Já falei que agora eu não posso! Não está me vendo concentrado aqui nas contas
da livraria?
— Ah, dá um
tempinho, vai. Você está cansado! Eu só quero um beijinho!
— Eu estou cansado,
mas preciso terminar estas contas, poxa!
— Se você não me
der um beijo eu me jogo desta varanda.
Derlaine se
encaminha para a varanda da sala do apartamento, que fica no oitavo andar.
— Ó, eu estou me
sentando no parapeito. Se não vier eu jogo o meu corpo para trás.
Preocupado e já com medo da esposa cumprir a promessa, Benvindo corre para evitar a tragédia. Felizmente, consegue puxá-la para si. Ela cai sobre ele, que vai ao chão de costas. Os dois finalmente se beijam. Benvindo cede à chantagem de Derlaine e esta consegue o que queria.
Mas Benvindo acaba
gostando do beijo e pede mais. É atendido, mas logo ele pede para fazer sexo.
— Você não estava
ocupado, não queria fazer conta?
— Eu deixo pra
fazer amanhã.
— Só porque você
quase me fez me jogar pela janela eu não vou transar com você.
— Não vai não?
— Hum, hum, rosna
em tom negativo.
— Então tá.
Benvindo se
levanta, calça um sapato, pega a jaqueta e as chaves do carro e vai em direção
à porta.
— Aonde você vai?
— No bordel procurar
uma prostituta. Se eu pegar uma doença venérea a culpa será sua.
— Está bem. Eu
faço.
Os dois fizeram o
melhor sexo do casamento. Mesmo assim Benvindo encerra o ato com um ar
angustiado. Ele se senta na cama e confessa para a esposa que o movimento da
livraria está fraco e que está se sentindo doente. Descobriu algo estranho na
garganta e disse estar com medo de ter desenvolvido um câncer e deixar os
filhos desencaminhados.
A preocupação maior
é com a filha do meio, Irene, que se formou em comunicação social, não
conseguiu emprego por causa da timidez, mas se recusa a estudar para um
concurso público. O problema é ainda mais grave porque Irene beira os trinta
anos, é solteira e ainda quer ser escritora. A irmã, Tássia, três anos mais
velha, é casada e concursada do Banco do Brasil. Costuma apoiar o pai na
cobrança para a irmã ser aprovada no concurso público. Considerada por Irene como a sua melhor amiga,
aproveita este sentimento para fazer chantagem contra a irmã imatura ameaçando não
falar mais com ela se ela não estudar.
Outro medo é não
ver o filho caçula Gabrielzinho crescer. O menino tem apenas nove anos e é muito
mimado. E exatamente neste dia em que os pais acabaram de transar, Gabrielzinho
encontra o pai saindo do quarto e pede:
— Pai, sabe aquele
carrinho de controle remoto que vimos no shopping no sábado?
— Sei não, meu
filho.
— Você compra ele
pra mim?
— Gabriel, o papai
tá duro.
— Mas eu queria
ele, pai. Gabrielzinho diz com a voz embargada e os olhos marejados.
— No seu aniversário
o pai te dá.
— Mas eu quero
hoje! O meu aniversário é só daqui a oito meses. O menino começa a se alterar.
— Hoje eu não
posso, Gabriel! Não acabei de dizer que eu estou duro? Repreende Benvindo.
— Se você não me
der o carrinho hoje eu fujo de casa.
— Está bem, vamos
lá no shopping agora.
— Oba!
O menino conseguiu o que queria. Voltou seis
horas depois, já brincando com o carrinho e empanturrado de lanche. Pai e filho
são recebidos por Derlaine que os pergunta se querem jantar.
— Não. Eu e o Gabriel
comemos muito no shopping.
— Por que não me
avisaram antes?
— Ele insistiu que
eu fosse comprar um carrinho de controle remoto pra ele. E você sabe como o
Gabriel é. Não pode sentir cheiro de lanchonete que pede para comer.
— Eu passei o resto
da tarde fazendo janta pra você e ninguém come, porra! Eu já estou com o braço
doendo de tanto mexer panela! Grita Derlaine.
Já irritado,
Benvindo reclama:
— Alguém te mandou
fazer janta, por acaso?
— Mas eu faço todos
os dias. É a minha obrigação de dona-de-casa. Lavei roupa a manhã inteira! Fui
ao supermercado antes de te pedir aquele beijo! As minhas varizes estão
queimando! Acho que eu vou morrer!
— Deixa de bobagem,
Derlaine! Ninguém morre por fazer serviço de casa!
— É o que você
pensa! Olha como as minhas pernas estão inchadas! Olha as minhas varizes: como
estão pretas! Mas eu tenho que fazer todo o serviço de casa sozinha! Não tem
ninguém pra me ajudar! Não tenho marido, não tenho filhas, não tenho empregada.
Quando eu morrer todo mundo vai ficar chorando de remorso no meu caixão!
Derlaine termina de
falar e cai aos prantos no sofá. Não sem antes quebrar um vaso de enfeite que
estava sobre a mesa de centro. Igualmente nervoso, Benvindo contra-ataca:
— Vai ficar fazendo
drama? Eu faço também! Eu trabalho o dia inteiro na livraria para sustentar a
boa vida de vocês! E olha que a livraria está quase falindo! O movimento do dia
mal dá pra pagar os fornecedores! Mas ainda assim tenho que pagar conta de
água, luz, telefone, internet, tv a cabo, brinquedos para o Gabrielzinho. A
Irene bem que podia trabalhar na livraria! Mas ela não quer! Depois diz que
quer ser escritora!
— A Irene não deu
certo na livraria! Ela tentou trabalhar lá. Você quem não quis!
— Então ela pode
muito bem arrumar outro emprego. Nem que seja de faxineira! Bem que ela podia
estudar para um concurso público! E vou mandar ela fazer isso agora!
Benvindo vai ao
quarto de Irene, que escutou a discussão dos pais e se deitou de bruços na
cama, chorando. Ele bate a porta, mas não é atendido.
— Irene! Irene!
Abra essa porta!
Benvindo decide
arrombá-la. Diz logo:
— Olha, a sua
moleza vai acabar, hein? Eu estou quase fechando a livraria! Você vai se
inscrever agora naquele concurso público para a Procuradoria Geral da União e
quero ver você estudando!
— Eu não vou fazer,
porque eu não vou passar! Concurso público não se passa e nem consegue
estabilidade com essa facilidade toda!
— Estudando você
passa! Vai ter que se matricular no cursinho! Na favela da esquina tem um
comunitário que não cobra nada!
— Para, pai! Para
de me humilhar! Eu não vou fazer cursinho para concurso público em favela! Você
não me apóia em nada! Diz a moça aos prantos.
— Se não fizer eu
te expulso de casa!
— Então me expulse!
Aliás, quer saber? Eu vou embora de casa, mesmo! Irene pega a bolsa de viagem,
põe as suas roupas e vai dizendo: — Eu vou embora dessa casa, sim! Não aguento
mais morar aqui! Tudo tem que economizar. Eu sei muito bem que o movimento da
livraria está bom! Você está usando isso é para fazer chantagem e mandar a
gente economizar! Mas não vou cair nessa!
— Ah, é? Eu vou te
mostrar as notas promissórias da dívida que eu tenho! Eu vou te mostrar o exame
médico que eu fiz! Eu vou morrer e deixar vocês à míngua para aprenderem a me
dar valor e a economizar!
— Se você me
expulsar de casa eu vou à favela da esquina, sim! Mas para comprar drogas! Você
vai ter uma filha viciada! Vou vender tudo aqui de casa para comprar pó!
Ou você prefere que eu me suicide?
Irene pega o
estilete que estava usando para fazer artesanato e encosta no pulso.
— Eu vou me matar,
hein?
— Está bem, minha
filha. Depois a gente conversa!
Durante a discussão
de Benvindo com a filha o telefone toca. Derlaine atende. Era Tássia, que
ligava desesperada.
— O que foi minha
filha?
— O Claudir me
chamou de gorda! Dá pra vir aqui?
— Ai, filha. Eu
estou cansada! Acabei de discutir com o seu pai.
— Mas você nunca me
dá atenção, mãe! Se fosse a Irene ou o Gabriel você estaria correndo para
atender.
— Não é isso,
Tássia! Acho que você não pode exigir que eu me desloque até a essa hora da
noite só para te consolar porque o teu marido te chamou de gorda!
— Mas ele me bateu,
mãe! Eu estou toda roxa! Se você não vier eu vou beber até ficar em coma
alcoólico.
Claudir, um homem
magro, honesto e calmo, toma o telefone da esposa e esclarece para a sogra.
— Dona Derlaine. Eu
juro que não fiz nada contra ela. Eu apenas reclamei que ela estava comendo
muito pavê e disse que ela ia ficar gorda.
— Mas por que você
bateu nela? Pergunta Derlaine secamente.
— Eu apenas a
sacudi, minha sogra. Ela começou a fazer um escândalo só porque eu pedi para
ela moderar no pavê. Não precisa vir a essa hora.
Tássia puxa o
telefone e grita para a mãe ouvir.
— É mentira, mãe!
— De qualquer forma
eu vou até aí.
Tássia desliga o
telefone e vibra com o que conseguiu. Claudir bufa e resmunga.
— Se eu soubesse
que a sua família fazia jus ao seu sobrenome jamais me casaria com você.
E se Benvindo
soubesse que teria uma família tão dramática, abandonaria o sobrenome Drähm,
herdado do avô alemão.
No dia seguinte,
Benvindo vai ao consultório do psicanalista. Meia hora depois a recepcionista o
chama pelo nome completo.
— Benvindo Lobo Drähm!
— Sim.
— O senhor já pode
entrar.
— Ah, tá! Obrigado.
Na sala do consultório,
Benvindo desabafa todas as chantagens e dramas familiares da véspera e dos
outros dias.
— Senhor Benvindo.
O senhor alguma vez já experimentou tentar não ceder às chantagens da sua
família?
— Já e não consegui.
Eu fico com pena. E com medo de acontecer realmente alguma tragédia.
— Em compensação o
senhor entra no jogo e alimenta a situação. Tente ser mais firme ou o seu
sobrenome será cada vez mais adequado à sua família. Passar bem.
Quando chega da
consulta, morto de cansaço e estressado com o trânsito, Derlaine o recebe
pedindo um ósculo.
— Ah, de novo não,
Derlaine.
— Se você não
quiser que me dar um beijo de novo, já sabe o que vou fazer.
— Vai fundo que
hoje eu não vou cair na sua chantagem.
Derlaine se
encaminha para a varanda da sala do apartamento.
— Ó, eu estou me
sentando no parapeito. Se não vier eu jogo o meu corpo para trás.
Benvindo finge não
ouvir a ameaça da esposa. Só não conseguiu ignorar o grito de Derlaine e o
estrondo seco um minuto depois.
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