Rotina
é isso que reclamamos quando não muda e isso que reclamamos quando muda.
Ele
estava casado com ela há pouco mais de dez anos. Não tinham filhos, pois ele
era estéril, o que eles acharam até uma coisa boa, já que nunca desejaram ter
um. Conheceram-se no cinema, quando ele sentou perto dela e começaram a
reclamar do filme que, por sinal, era muito ruim mesmo. Foi o que chamam de
“amor à primeira vista” ou, no caso, ódio, pois odiaram o filme, mesmo tendo
sido o ponto de partida dessa relação.
Ele
trabalha em uma grande empresa de software e ela em um famoso salão de beleza.
Tomam café da manhã juntos e só se veem à noite, na volta para casa. Se são um
casal feliz? Quem olha de fora não tem dúvidas. Quem olha de dentro também não,
pois se auto enganam para manter a aparência de casal perfeito. A realidade,
por outro lado, é muito conturbadora.
Ele,
três anos mais velho que ela, chegou a cansar e declarou rebelião à homeostase.
Conheceu a secretária do amigo cuja sala ficava do lado da sua. Mulher bonita,
quatro anos mais jovem que sua esposa, cujo olhar que lhe lançava indicava que
ela queria algo mais. Certa sexta-feira ele ligou para a esposa dizendo que
iria fazer duas horas extras, faria um lanche ali mesmo e chegaria mais tarde
em casa. Na verdade o lanche que o esperava era a secretária loira que já o
aguardava na porta de saída. Pegaram um táxi e foram para o motel mais próximo.
Duas horas não foram suficientes. Ele chegou em casa três horas depois, sem
vestígios de amasso, beijo ou algo que o denunciasse. Até o perfume dela, que
ele relutou em retirar de seu corpo, saiu com um banho que quase lhe esfolara a
pele.
Foi
recebido pela esposa com carinho e lhe explicou a razão de ter demorado mais. Mostrou
até provas no notebook da razão de seu atraso, não que precisasse, pois sua
esposa tinha profunda confiança nele. Ou ao menos era nisso que ele acreditava.
Outras
horas extras foram feitas. Apareceram até trabalhos na casa de amigos no fim de
semana. Ela começou a sentir sua falta. As saídas que planejavam sempre para os
domingos agora se tornaram escassas. Ele estava com um brilho diferente nos
olhos, um sorriso bobo e todo o seu corpo parecia denunciar algo. Ela olhou
para o espelho em uma noite chuvosa, mais uma noite de hora extra, e encarou a
si mesma. De um lado via a confiança cega, a vergonha por estar desconfiando do
seu companheiro de mais de dez anos. Do outro a verdade sendo jogada diante de
seus olhos, como um balde de água fria. Ela decidiu se entregar à segunda
opção. No dia seguinte, após receber a já costumeira ligação avisando sobre
mais uma hora extra, ela pegou o carro de uma amiga emprestado, com a desculpa
de que o seu estava com um problema e parou na rua em frente à empresa do
marido. E lá ela viu. O denunciador brilho nos olhos agora estavam em chamas. O
sorriso dele abriu de orelha a orelha e depois de boca a boca quando a loira
saiu e lhe deu o braço para em seguida entrarem no táxi. Deu pra ver o beijo
demorado no banco de trás.
Ela
respirou fundo e os acompanhou até o motel. Eles entraram e ela ficou dentro do
carro, inerte, o busto arfando sob a blusa, um pequeno, quase imperceptível,
tremor na sobrancelha direita. Segurou firme no volante do carro e voltou para
casa.
Nessa
noite ele demorou mais de três horas para voltar para casa. E foi recebido com
uma ótima visão. Sua esposa trajava um vestido negro com um decote que
valorizava seu belo busto. Usava o perfume que ele mais gostava e o saudou com
um longo e profundo beijo na boca. Da cozinha sentiu o cheiro de peixe assado com
batatas, seu prato preferido.
-
Estamos comemorando algo? – ele perguntou abraçando-a pela cintura.
-
Não, só quis fazer algo especial para você hoje.
Ele
franziu o cenho. Mas sorriu, pois estava faminto e não podia dar chances a ela
de desconfiança. Comeram e depois foram para a cama. Sim, ele não se saiu muito
bem, pois estava cansado e suas forças ficaram no corpo da secretária com quem
passou quatro horas. Ficou preocupado, pois pensava que sua mulher iria
reclamar ou ficar desconfiada, mas não. Ela foi até compreensiva.
-
Muito cansado, não é? Você deveria dar um tempo com essas horas extras.
-
Verdade, verdade, mas sabe como é...
-
Sim, eu sei.
Deu
um beijo nele e virou-se. Ele não demorou muito a dormir, pois o cansaço e o
efeito do vinho já lhe acometiam. Ela virou novamente e ficou olhando para ele,
dormindo, tranquilo, sem suspeitar de nada. E ele sequer teve coragem de ser
sincero com ela depois de tudo o que lhe preparara. Ela voltou a sua posição
sem esboçar nenhuma reação. Permaneceu com os olhos abertos, contemplando o
nada. Podia sentir em seu corpo um nojo proveniente dos resquícios que a
secretária havia deixado no do seu marido. Um leve arrepio lhe passou pela
espinha ao pensar nisso. Fechou os olhos e dormiu.
Ela
não acreditou no que aconteceu no dia seguinte. Era sexta-feira. No domingo
tinham combinado, já há duas semanas, de ir para a casa de sua mãe, pois era
seu aniversário. Mas ele veio com uma conversa de que precisaria trabalhar o
fim de semana inteiro na casa de um amigo, pois necessitavam entregar um
projeto muito complexo na segunda. Houve um inferno dentro dela, pois seu
sangue ferveu. Ela conseguiu não demonstrar isso. Pelo contrário. Demonstrou
atenção e empatia. Se ofereceu para fazer um pequeno lanche, mas ele recusou.
Estava animado, uma animação tão grande que mal conseguia disfarçar. E foi.
Na
hora em que terminava o expediente dele, ela saiu do seu trabalho no carro da
amiga e esperou na frente da empresa. Lá estava, no mesmo horário, a secretária
esperando ele descer e entrarem no carro. Seguiu-os e não escolheram dessa vez
o mesmo hotel. Depois de uns vinte minutos pararam numa casa de praia. A casa
de praia deles, a mesma que não visitavam fazia dois meses. Os olhos dela
começaram a soltar faíscas. Desceram e entraram na casa como dois adolescentes,
entre beijos e abraços. A metade do sol se avistava acima da linha do
horizonte, refletindo na praia e dando lugar a uma noite escura. A mais escura
da vida daquelas três pessoas.
Ela
continuava no carro, olhando para a casa. A luz do primeiro quarto, no andar de
cima, acesa e as duas silhuetas entre abraços e carícias. Seus lábios esboçaram
um sorriso. E ela desceu do carro.
Ele
ofegava enquanto a beijava. Ali estavam os dois, sós, por um fim de semana
inteiro. Ela jogou-se na cama e ele olhou aquele perfeito exemplar do sexo
feminino, loiro, seios fartos, pele alva e cheia de vontade de fazer amor com
ele até os dois caírem no sono profundo da fadiga. Ela estava só de sutiã e
calcinha, as pernas cruzadas e um dedo na boca, chamando-o com o olhar. Ele
tirou a camisa e a calça e foi encontrá-la, num misto de beijos, carícias e
luxúria exacerbada. Via nela tudo o que não encontrava mais na sua esposa. Não
que sua esposa fosse feia ou menos sedutora, não mesmo, mas parece que a novidade
o deixara mais atraído. Ele não sabia explicar muito bem, mas isso sequer
importava. Quando estava com aquele corpo colado ao seu, nada mais importava. E
os gemidos daquela mulher ecoavam durante todo o dia nos seus ouvidos. Seu
perfume impregnara de tal forma em suas narinas que ele não sentia mais odor
nenhum além do que o corpo dela exalava. Ela fazia com ele coisas excitantes,
que nem sua mulher conseguia mais. Para ele aquilo era o paraíso. Para ela, um
sonho que estava se tornando realidade a cada dia.
Estavam
ali, nus, na cama, em movimentos rápidos, desfrutando um do corpo do outro,
banhados em suores e secreções, numa sinfonia tocada pelos gemidos de ambos e o
roçar de suas peles. Mas a música parou.
A
esposa dele entrou sem muita pressa pela porta com uma arma na mão apontando
para os dois. A secretária abafou um grito com a mão e seu marido arregalou os
olhos.
-
Espera, amor, eu posso explicar.
“Amor”.
E ela riu disso. Com as duas mãos segurava a arma e apontava para os dois
corpos nus, agora mais relaxados por causa da ameaça iminente. A secretária
procurava se cobrir enquanto o marido olhava para a esposa como se tivesse
visto um fantasma.
-
Você não precisa fazer isso.
-
Não? E você precisava fazer isso? – ela respondeu olhando para a secretária.
- Eu
posso explicar.
-
Não precisa. Você já foi muito claro.
A
secretária chorava e tentou falar, balbuciando.
-
Senhora, por favor...eu não tenho culpa...
Ela
olhou para a mulher nua na cama com rugas na testa. Riu de pena.
-
Mais de dez anos juntos e é dessa forma que você agradece?
O
marido levantou as duas mãos e viu-se em seus olhos pequenas gotas se formarem.
Ele não sabia mais o que dizer.
-
Você, fique de quatro. – ela falou para a secretária num tom de ordem que a fez
ficar de boca aberta.
-
Mas eu...
-
Fique de quatro agora! - E apontou-lhe a arma, no que a fez se posicionar
rapidamente.
- O
que você pretende... - o marido não continuou, pois a arma agora estava
apontada para ele e foi engatilhada.
-
Agora você vai comer ela.
Ele
olhou para a esposa incrédulo, os lábios trêmulos.
-
Como é?
-
Rápido, comece a comê-la.
Ela
aproximou a arma na cabeça dele e via-se, pelos seus olhos, que agora pareciam
não ter vida, que ela estava falando muito sério.
-
Mas... - ele apontou para baixo, para aquilo que já não tinha ânimo para fazer
nada.
-
Não importa, você consegue, afinal, você conseguia mais com ela que comigo...
Rápido!
Ela
encostou mais forte a arma na têmpora dele, fazendo-o se ajeitar, colocar as
duas mãos nos quadris da secretária, que apoiava os cotovelos na cama e
enterrava o rosto banhado em lágrimas nas duas mãos. Soluçava profusamente.
-
Por favor, senhora, por favor...
-
Cala a boca! E você! Rápido!
O
homem torceu os lábios, fez uma careta e começou a chorar. Várias lágrimas
brotaram de seus olhos, deixando seu rosto vermelho, um quadro patético.
-
Ah, agora você não é tão homem? – a esposa falou com um sorriso torto. – Não
tem vergonha? Chorando? – e ele a olhava com súplica, gaguejando desculpas,
balbuciando declarações inúteis. – Não quero saber de mais nada, comece antes
que eu enterre essa bala na cabeça dessa rapariga.
Ele
suspirou fundo. Catarro saia de seu nariz. Lágrimas caindo no corpo da mulher
nua, que ainda chorava. Colocou seu membro nela e começou a se movimentar, devagar,
com dificuldade, enquanto sentia o metal frio na sua têmpora.
-
Isso, continue.
De
alguma forma ele conseguiu endurecer o membro, em meio a todo o pavor que lhe
percorria o corpo, em meio a todo o terror que inundava sua mente.
-
Quando for gozar me avise.
Ele
parou e olhou para ela com um expressão de desespero no rosto.
-
Por favor, não...
-
Rápido!
Ele
obedeceu. Sentiu perpassar no seu corpo certo prazer por causa da pressão e do
sentimento causado pelo ato sexual naquela mulher que ele passara a desejar
todo dia. Sua mente, confusa, não entendia o que estava acontecendo. O choro da
secretária parecia lhe atiçar também. O misto de medo e prazer o fizeram bater
à porta do orgasmo e foi obediente.
-
Estou chegando... – ele falou para a esposa.
- Ótimo.
E o
tiro ecoou pelo quarto, seguido de um silêncio sepulcral. A expressão do
marido, um misto de prazer e medo, foi a última lembrança que ela teria dele. A
parede fora manchada por sangue e carne. O grito da secretária quebrou o silêncio.
Ela olhou horrorizada para o corpo sem vida na cama, o sangue espirrado em seu
próprio corpo, a mulher com a arma na sua frente.
-
Por favor, não me mate! Por favor!
-
Não preciso te matar. – a esposa começou a caminhar em direção à porta.
A
secretária estava com o corpo tremendo, a maquiagem borrada pelas lágrimas, os
cabelos desgrenhados.
-
Metade de você morreu aqui esta noite. – disse a esposa segurando a maçaneta da
porta e se preparado para fechar. – Vamos ver como você consegue sobreviver
apenas com a outra metade.
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