Fazia frio em São Paulo.
Não que ela precisasse usar o sobretudo que vestia, mas era preciso manter a
elegância. Ou melhor, a prepotência. Atravessou a porta automática de vidro do
Hospital Central Diamond. O ar condicionado garantia a manutenção da vestimenta
imponente... no Rio de Janeiro, onde acabara de desembarcar e fazia muito calor.
Anastácia precisava manter
a prepotência. Ou melhor, a superioridade. A superioridade de vencedora. De
quem, em um espaço de apenas um ano, era apenas uma dona-de-casa de Teresópolis,
sem ambição, nem esperança de manutenção da estabilidade financeira. Foi
indicada por uma professora da pós-graduação e rapidamente se tornou estrela de
um programa feminino em São Paulo.
Quando recebeu o convite,
abandonou o marido doente que a sustentava (daí o medo de perder tudo) e a
filha adolescente. Partiu para São Paulo com o novo namorado, o colega da mesma
pós-graduação. Arrumou pra ele o cargo de operador de câmera do estúdio onde
era apresentado o programa.
Severino tinha aparência
rude e era natural de Belém do Pará, mas morava em Xerém. Por dentro, era um
homem educado, inteligente, incrível, maravilhoso e evangélico. Tão evangélico
que converteu Anastácia, ex-católica fervorosa, que ia à missa todos os
domingos com a filha e o primeiro marido.
Anastácia caminhava em
passos rápidos pelos corredores frios do hospital particular. A sola de madeira
da sua bota italiana de salto alto batia forte sobre o piso de granito, criando
uma melodia seca e ritmada.
O destino da caminhada
esnobe de Anastácia era a Unidade de Terapia Intensiva, onde seu ex-colega e
ex-amigo Guilherme padecia de câncer na tireóide. Guilherme amava Anastácia e
não se separava dela e de Severino nas aulas da pós-graduação. Os dois eram os
únicos com quem o doente falava na faculdade. Mas respeitava o casamento e a
filha da já senhora de meia-idade, o que Severino não fez. Por isso, escondia o
seu amor pela ex-amiga.
Junto a desconfiança que a
apresentadora de programa feminino tinha dos sentimentos de Guilherme, ela o
achava chato, grudento, pedante e encostado. Por isso, se afastou, com apoio de
Severino, que se dizia amigo dele. Fugia quando apareciam os trabalhos em
grupo, o que deixou Guilherme bastante estressado e magoado.
Ao fracassar na matéria
prática de vídeo, da mesma professora que indicou Anastácia para o programa
feminino em São Paulo, e ficar sem grupo na outra cadeira, Guilherme abandonou
a pós, mesmo com os falsos apelos de outros colegas e da coordenadora. Só
faltavam esses dois módulos. Mesmo assim, Guilherme desistiu.
Depois disso, a loja de
auto-peças do seu pai quebrou, o terceiro livro que pagou para publicar não
vendeu absolutamente nada e seu nódulo na tireóide evoluiu para um câncer.
Enquanto isso, Guilherme escreveu um conto em que criticava os seus ex-amigos e
publicou no seu blog.
Anastácia, que jamais lera
um conto de Guilherme, leu justamente esse e, constrangida, jurou romper a
amizade para sempre.
Por baixo da arrogância,
prepotência, orgulho, ar de superioridade e esnobismo, brotou a culpa. Dez anos
depois, procurou aliviar a consciência. Ao procurá-lo, descobriu que o câncer
de Guilherme agravou-se e ele estava internado na UTI, custeado pela irmã
bem-sucedida na estatal de petróleo.
Encerrou sua caminhada
prepotente com toques de remorso quando viu porta da antessala da Unidade de
Tratamento. Olhando pelo vidro, não reconheceu o ex-amigo em nenhum dos leitos.
Viu dois vazios, em outros tinham uma idosa, um idoso, um senhor negro e, no
último, alguém com a cabeça enfaixada, todo machucado.
Na recepção, perguntou se
havia outro conjunto de UTIs. A atendente, para adiantar o serviço, pediu o
nome do paciente. Após um minuto de batuques no teclado do computador do
sistema, a moça respondeu.
— Guillherme Augusto
Moraes de Carvalho? Ele ficou neste setor, sim! Mas faleceu há um mês.
— Obrigada.
— A irmã dele está sentada
ali na frente, pra acompanhar a mãe, que é quem está internada aqui agora.
Virou-se para trás e viu
uma mulher com menos rugas do que ela. Também estava bem arrumada, mas com
roupas mais leves. Puxou conversa.
— Você que é a irmã do
Guilherme?
— Sim, sou. Respondeu a
mulher, com ar mais superior do que Anastácia.
— Eu sou Anastácia, colega
de pós-graduação do seu irmão.
Ela estendeu a mão para a
irmã do ex-amigo, que recusou o cumprimento.
— Eu sei, meu irmão não
parava de falar de você. Morreu falando de você e do seu marido, Severino.
— Eu fiquei sabendo que
ele teve câncer. Eu sinto muito.
— Quando ele estava vivo
você não sentia nada por ele, né? Não precisa sentir agora, que já é tarde
demais. Sorriu sarcástica, para depois perguntar. — Agora que você veio
procurar ele? Depois de dez anos???
— É porque eu estava muito
ocupada com o meu programa em São Paulo. Só agora tive um tempo para
procurá-lo. E acabei descobrindo que a doença dele agravou e ele morreu, né? Eu
queria pedir perdão por tudo que eu fiz, pela forma fria que eu comecei a
tratá-lo e...
— Demorou dez anos para
você encontrar um tempo para vir visitar o meu irmão? Dez anos para dar o apoio
que ele precisava? Dez anos para perdoá-lo??? A irmã encerrou esta última frase
com um grito. E continuou em voz alta, já cutucando o seu dedo sobre a blusa de
seda de Anastácia. — Vocês, jornalistas, são arrogantes, mesmo! Prepotentes,
esnobes, vagabundos! Agora é tarde! Tarde demais! Não precisa mais pedir perdão
porque o meu irmão já está morto! Meu irmão que gostava tanto de você. Tinha
tanto carinho por você. Sofreu quando você o rejeitou! Sofreu quando você foi
embora pra São Paulo, bem-sucedida e ele fracassado. Sabia que a doença dele
piorou por causa disso? Sabia? Agora está morto e enterrado. E a minha mãe está
indo se encontrar com ele. Some da minha vida, antes que eu não responda por
mim!
— Ok.
Anastácia já não tinha
mais a prepotência, a arrogância e a superioridade vencedora da ex-dona de casa
que largou a família para ser apresentadora. Despiu-se da elegância do
sobretudo que trouxe de São Paulo para o Rio de Janeiro, silenciou a bota
italiana, imóvel no piso de granito, e desabou na poltrona macia da recepção do
Hospital Central Diamond em um choro incessante de culpa, que demorou dez anos
para se manifestar. Tarde demais para ser dissipada.
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