Por Hemerson Miranda
Existem imagens que marcam e fixam-se
em nossa mente e nos acompanham nas lembranças até o fim de nossas vidas. Minha
rotina foi sempre a mesma. Tendo sofrido um acidente de trabalho que me
decepara um braço eu vivi, desde os meus 40 anos, com uma pensão que era o
suficiente para um homem solteiro e sem muitos sonhos como eu. Toda manhã eu
acordo, tomo meu costumeiro banho, pego o jornal na porta e saio em direção a
padaria duas ruas depois da minha. Raramente eu mudo essa rotina e quando mudo
o dia me parece estranho. E quando as mesmas pessoas que eu costumo
cumprimentar nessa minha caminhada não estão nos mesmos lugares de sempre eu me
pergunto logo o que teria acontecido.
Na casa dos 40 anos eu caminhava em
direção a padaria algo me chamou a atenção. Era uma casa grande, mas com um
muro baixo que a cercava. Toda a sua fachada era acinzentada, janelas com
cortinas, luzes bruxuleantes. O que antes deveria ter sido um belo jardim na
frente da casa hoje era nada mais que um lençol grosso de folhas secas que
caiam das várias árvores que rodeavam o prédio. Uma arvore em especial me
chamava a atenção. Era a menor das árvores, em cujo galho ficava um balanço
improvisado, feito com um pedaço de madeira amarrado por duas cordas grossas. Naquele
dia, naquele balanço, estava um garoto de uns 9 ou 10 anos sentado, mas não
balançava. Estava apenas segurando as cordas e olhando para o horizonte, como
se visse algo que mais ninguém podia ver. Aquela foi a primeira imagem que se
fixou em minha mente.
Nos outros dias em que eu passava
parecia que a casa estava abandonada, mas uma vez ou outra se ouvia música,
conversas e barulho vindo do que pareciam ser os quartos. Nunca vi os moradores
saírem daquele lugar. Apenas o menino no balanço foi a única pessoa que eu e a
maioria dos moradores da rua haviam conhecido.
A segunda imagem que marcou foi quando
eu estava com um pouco mais de 50 anos. Depois de meu banho eu peguei o jornal e
sai em direção a padaria. Novamente eu passaria pela casa que sempre me chamava
atenção, mesmo não vindo nenhum barulho de dentro dela. A casa me passava uma
melancolia que por vezes estragava o meu dia. A noite eu evitava passar na
frente dela. Causava-me arrepios e sinto até certa vergonha em confessar isso. Mas
voltando a imagem. Naquela manhã o balanço estava ocupado novamente, depois de
tanto tempo. Eu reconheci o garoto pelas feições que não mudaram muito desde
então. Ele vestia roupas mais condizentes com sua idade agora. Já era um jovem
rapaz. Dessa vez um sorriso lhe aflorava dos lábios, mas não era por menos. Ele
estava de pé atrás do balanço e, sentado no mesmo, estava uma jovem de uma
beleza impressionante. Loira e alva como a neve, lábios carnudos e delineados
pela mão de um artista. Trajava um vestido curto, florido, deixando a mostra
suas pernas bem torneadas. Seu busto parecia arfar de alegria. Ambos conversavam
e sorriam, sem dar atenção a quem passasse na rua, pois como já havia dito, o
muro era bem baixo e dava pra ver perfeitamente o casal. Ele a abraçava como se
não a quisesse perder por nada neste mundo. Beijava seu pescoço e ela fechava
os olhos como não querendo acordar daquele sonho.
Aquela foi a primeira vez que um
sentimento de alegria me consumiu ao passar defronte aquela casa. Eu sorri com
o casal. Respirei fundo e senti o cheiro do amor juvenil no ar. Fiquei imaginando
o que eu estava perdendo por não ter encontrado uma companheira para estar ao
meu lado nos meus últimos anos de vida. Mesmo assim fiquei feliz pelo rapaz. Nos
dias que se passaram eu tinha a esperança de encontrar o jovem casal novamente
no mesmo lugar, mas meu desejo não fora satisfeito.
Foi quando eu completei meus 60 anos
que a imagem mais perturbadora que se fixou em minha mente aconteceu. Naquela manhã
o tempo parecia se preparar para uma tempestade. Nuvens escuras e pesadas
cobriam todo o céu, transformando a manhã em noite. Tomei rápido o meu banho
para não chegar ensopado na padaria. Peguei o guarda-chuva e fui até a porta
para pegar o jornal. Naquela idade eu, que tinha poucos amigos, mas amigos
verdadeiros, preocupava-me em perder um da mesma forma que me preocupava em
perder mais um fio de cabelo da minha cabeça em escassez. Tomei o costume de
ver o obituário todas as manhãs, mas preferia fazer isso depois do café, para
não me fazer mal, caso algum de meus conhecidos estivesse no jornal. Aquela manhã,
porém, algo me impulsionou a fazer o contrário.
Saindo em direção a rua, com o
guarda-chuva no braço e o jornal na mão, comecei a ver a sessão de obituários. Tal
não foi a minha surpresa ao ver um rosto familiar. Parei, mas meu coração
acelerou. Eu só havia a visto uma única vez, mas foi o suficiente para não me
esquecer jamais. Era com certeza a mesma moça que estava no balanço com o rapaz
há alguns anos. O mesmo sorriso, os cabelos dourados caindo como uma cascata
sobre os ombros. Não podia acreditar. O jornal dizia que ela havia sido
atropelada duas noites atrás. As informações eram muito poucas. Falava apenas
do funeral que já havia acontecido e dos pais que lamentavam profundamente a
perda. Nada mais.
Continuei caminhando vacilante por
causa da notícia. Era como se uma bela rosa tivesse sido esmagada. Só a tinha
visto uma vez, mas meu coração sentia uma dor profunda por ela e pelo jovem
rapaz que parecia amá-la tanto. Quando passei em frente a casa deixei o jornal
e o guarda-chuva caírem no chão. Coloquei a minha única mão na boca, abafando
um soluço, um grito, qualquer expressão de horror indizível.
Não havia ninguém na rua. As nuvens
escuras continuavam a se avolumar. O balanço estava desfeito. A tábua estava no
chão, do lado de um pequeno banco tombado. As cordas se tornaram um instrumento
de suicídio e o jovem rapaz estava suspenso, entre céu e terra, com o pescoço
quebrado e os olhos esbugalhados. Da boca saia sangue escuro. Os olhos. Os olhos
olhavam para mim. Havia lágrimas. Havia dor. E havia um quadro feito por aquela
imagem perturbadora que nunca mais saiu da minha mente.
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