um cinto de ouro e um rifle

de Miguel Angel


Sim, estava na hora de morrer. Amanhã veria como seria. Lera na Bíblia sobre isso e dizia horrores sobre o pecado do suicídio. Mas pecado maior não era estar nessa estrada... – Estrada? – ve-re-da estreita e barrenta pejada de insetos e pássaros berrando aloprados, seu nariz a escorrer, doendo o corpo todo, com vontade de... – de morrer! Poderia morrer nesse momento? Ó se morreria! Esticou as rédeas e o cavalo relinchou baixinho, mal-humorado, depois cabeceou recuperando a folga das rédeas e desobediente continuou a marcha.
– Para pr’eu morrer, seu pangaré desgraçado! – puxou com mais força sofreando de vez o animal que, mastigando o cabresto, resmungou irritadiço, exalando densas nuvens de vapor. E esperou. Ambos esperaram. Firmeza? – Não! – Como faria para morrer? – Sim! – Como seria? Pendurada pelo pescoço num ramo de árvore! – Cadê a corda? – Jogar-se no próximo despenhadeiro! – Qual? Cuspiu de novo e soluçou, soluçou. E no irremediável desespero, apertou os olhos molhados até doerem e, na barra da saia, assoou-se barulhenta. Embaralhada com os gritos dos pássaros e zumbidos de insetos, ouviu detrás dela:
– Salúd, senhorita!
... e ouvi por detrás de mim uma grande voz, como de trombeta,
E voltei-me para ver quem falava comigo.
E, ao voltar-me, vi um semelhante a filho de homem, vestido de uma roupa talar,
e cingido à altura do peito um cinto de ouro e um rifle
e a sua cabeça e cabelos eram brancos como lã branca, como a neve;
e os seus olhos como chama de fogo;
– Mi nombre es Alfonso, mucho gusto! – Gritou o desconhecido, à distancia.
Sem mais, aproximou-se, tirou delicadamente as rédeas das mãos de Amanda: “¿Puedo ayudarla?” e conduziu os cavalos até emparelhá-los e seus joelhos se tocarem: “¿Que tiene este zaino, no quiere andar?” Amanda, imobilizada pelo inesperado, ainda tinha lágrimas nos olhos, e o nariz escorrendo e a boca aberta, cobertos com a borda da saia; o homem fingiu não olhar a perna descoberta até a coxa: “Para donde vaya la señorita... ¿puedo acompañarla?” Ela largou a saia, arrumou-a cobrindo as pernas, esfregou os olhos com a manga do casaco, fechou a boca e o frio desvaneceu-se espantado pelo calor que via nos olhos daquele cavaleiro amadurecido. O piar da perdiz, o guincho do gavião e o caracará emudeceram, para ela ouvir claramente: “Es un plazer encontrar tan temprano y en este camino una mujer asi… asi… ¿Usted tiene nombre?” O silêncio de Amanda respondeu. O homem tirou o chapéu e mostrou esparsa cabeleira prematuramente encanecida e sorriu contrafeito: “Me desculpe, moça! Algumas vezes esqueço que estou no Brasil! Sou paraguaio, como deve ter notado...” Amanda interrompeu dizendo: “Amanda”. O galante homem repetiu: “Amanda”? e recitou, divertindo-se: “Amar Amanda. Amanda ama. Amo minha ama”, e soletrou “Amanda”. É como se diz chuva, no guarani de meu povo.” – explicou folgazão. Amanda não sabia, mas gostou, até do cavalo branco contrastando com o marrom de seu pangaré, par a par troteando com as pernas do casal se roçando de permeio. Ela apreciou o anel dourado no dedo e a corda entrelaçada que segurava o grande chapéu descansando na nuca do homem amorenado, mais de raça que de sol. Admirou as botas de cano longo, os acicates de prata e da bata envergada, que se expandia feito manto sobre as ancas do animal, permitindo-lhe entrever o casaco de botões dourados sob a cartucheira a tiracolo.
– Estou indo pros lados de Dourados. Vosmecê também? – explicou e quis saber o homem, sem deixar de segurar as rédeas dela.
– Perto da vila próxima... Lá tem uma escola. – Tartamudeou, Amanda.
– A moça estuda?
– Ensino.
– Maestra! Professora de letras e escritas! Aritmética! Que interessante. – Celebrou o paraguaio.
Pela primeira vez Amanda se sentiu Interessante. E gostou da voz do homem, do sorriso de brancos e grandes dentes e dele conduzir seu manhoso. Que era égua, e parecia simpatizar com o dele.
Até alcançarem o casebre da escolinha, Amanda ouviu e pouco entendeu, que seu novo conhecido estava no Brasil intermediando negócios de compra de terras a conterrâneos do Paraguai. (...) Finalmente, na última curva do caminho, tão esquecida de onde ia e de onde vinha, Amanda surpreendeu-se ao ver aparecer a escola à sua frente e com o chilrear de diversos curumins brincando no pátio que rodeava a modesta edificação; gritando seu nome ao reconhecê-la, alguns correram a seu encontro e outros, dela, amedrontados com o cavaleiro desconhecido a seu lado.
Apeando da montaria, o homem disse: – Voltando de Dourados, deverei passar por aqui novamente. – Tomando-a nos braços para ajudá-la a desmontar, mantendo-a firme no ar, sussurrou. – Posso revê-la, Amanda? – E ela igualmente apreciou sentir seu corpo roçando-se, apertado entre ele e o flanco do animal, em arrastado descer. Depois o homem remontou e, cavaleiroso, à maneira de despedida, gracejou – Gosto muito de “chuva”, Amanda! Hasta la próxima, lluvia! –, riu e acenou-lhe com o chapéu, sacudiu os cabelos brancos, idênticos ao garboso animal que montava, cobriu a cabeça e desapareceu troteador na próxima curva da estrada.
Do interior do educandário, entre a criançada, o padre observava da janela, franzindo a testa, a professora atrasada se despedindo de um estranho, e entrar toda esfuziante.
– Padre! – exclamou ao vê-lo.
– Surpresa! Vim fazer uma visita. – e sinalando a janela aberta, emendou. – Aquele homem foi causa de seu atraso? Quem é ele?
– Não sei.
– Ai, ai, Amanda. Lá vem você com suas mentiras.
– É paraguaio.
– Se sabe onde nasceu, deve saber o que quer. Conhece-o de há muito?
– De hoje. – Amanda tirou o casaco e da janela chamou retardatárias. – Crianças! Todas pra dentro!
– Vivendo no meio desse mato, sozinha. Que será que andas aprontando. E esse homem. O que ele quer de vosmecê? – insistiu o padre. Amanda deu de ombros e disse.
– Não sei. Nada. Crianças, pra cá! – voltou a chamar.
O velho clérigo sentou-se a um canto do recinto e, reparando na aula, notou um contentamento em Amanda que ele desconhecia; mas não desistiria de tentar descobrir as intenções daquele estrangeiro. E principalmente as dela. Estava convencido que a responsabilidade pelo destino da moça cabia a ele, padre-mestre, e aos missionários. E sempre duvidou ter sido uma boa ideia conceder aquela tapera só para mantê-la longe, ainda que perto deles.
A partir daquele dia – Amanda jamais podia supor –, sua vida iria se transformar... – Transformar!? – trans-tor-nar completamente.
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Do romance "Moscas e aranhas de guerra"

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2 Comentários

Miguel,

Eça de Queirós, escreveu muitos livros como sabes. "As Pupilas do Senhor Reitor", é um deles.
Esta passagem, e sobretudo a cena do Clérigo faz-me lembrar Eça neste seu livro.
Isto para te dizer que, estás quase um Eça! Para te dizer que, a tua escrita flui e cada vez melhor!
Continua, Amigo!

Abraços!
Anônimo disse…
Caríssimo.
Que delícia de cena! Eu estava ali, na pele de Amanda.
Você, como sempre atrai e fixa a atenção com seu jeito carismático de descrever a ficção, tornando-a possível e real.
Beijos,
A Condessa Descalça.