DIRETO DO ARQUIVO - PEDRO J. BONDACZUK

 O maior desastrado 

Pedro J. Bondaczuk* 


O sujeito desastrado, aquele que invariavelmente tropeça onde e quando não deveria tropeçar, que mostra extrema inabilidade nas tarefas e relacionamentos mais triviais e que faz tudo errado, quando as circunstâncias lhe são benignas e favoráveis, faz a delícia dos que vivem de fazer humor. Hollywood sempre explorou com competência o tipo, para fazer multidões rirem (mais do que isso, chorarem de tanto gargalhar) com personagens trapalhões, como o imortal Carlitos de Charles Chaplin, o Gordo e o Magro, os Três Patetas, Cantiflas, Edie Murphy e tantos e tantos outros, que ao longo dos anos foram um santo remédio para desopilar nosso fígado. Na literatura, o tipo também (como não poderia deixar de ser) é bastante explorado. 

Na televisão, nem é preciso lembrar. Todos os programas humorísticos têm lá o seu trapalhão, com ou sem bordões característicos, a garantirem o Ibope das emissoras. Todos nós, porém, em maior ou menor medida, somos, em determinadas circunstâncias, incorrigíveis desastrados. Nem sempre nossas trapalhadas são motivos de riso para os outros e, pior, para nós mesmos. Às vezes, são para se lamentar e se chorar. Marcam nossas vidas e, não raro, as arruínam. 

No mundo, convenhamos, não faltam pessoas desastradas, que fazem tudo errado e depois se queixam das conseqüências, que quase sempre são óbvias e, portanto, evitáveis. Há, por exemplo, os que envenenam os relacionamentos afetivos com prepotência, egoísmo e ciúme e depois acham estranho o fato de acabarem sozinhos. Há, também, os que se mostram irresponsáveis na execução de suas tarefas e se lamentam quando são demitidos. Mas o maior desastrado de todos é o sujeito com reconhecido potencial para ser bem-sucedido nas artes, nos esportes, em alguma profissão etc., mas desperdiça seu talento ao fazer escolhas equivocadas. A maior insensatez é a da pessoa com obsessão pelo dinheiro. É a de quem concentra toda a atenção e esforços somente nisso, a pretexto de “ganhar a vida”. Todavia, agindo assim, na verdade a desperdiça, deixando de usufruir bons momentos que surgem em seu caminho e que dificilmente voltam depois de haverem passado. 


O que devemos é nutrir um ideal elevado e sair na sua conquista, empenhando, nisso, o que tivermos de melhor. Escreva um poema ou um romance; componha uma sinfonia; pinte uma tela com competência; esculpa uma escultura perfeita; construa uma casa ou uma ponte; descubra a cura de uma doença ou faça outra coisa bela ou útil qualquer, mas sem se preocupar com o que ou o quanto isso irá lhe render. Se o que você fizer de fato tiver valor, fatalmente você será recompensado por isso. E se não for? A satisfação íntima da realização de uma obra-prima será uma compensação mais do que valiosa, pois é algo que não tem preço. Não seja, pois, o desastrado dos desastrados. Não faça como aquela mãe que jogou o bebê junto com a água do banho. Nunca jogue a vida fora! Um dos princípios fundamentais do budismo diz que para evitarmos sofrimentos – causados, sobretudo, pela frustração – temos que eliminar os desejos. Se não todos, pelo menos a maior parte deles precisa ser eliminada. Quanto mais os eliminarmos, maiores serão as possibilidades de nos sentirmos felizes. Impossível? Não! Mas é extremamente difícil. Somos (salvo raríssimas exceções) desastrados nesse aspecto. Desejamos tanto o que pode ser alcançado, quanto (e principalmente) o que está absolutamente fora do nosso alcance. E este último tipo de desejo é que se torna a grande armadilha, que nos impede de encontrar (e de trilhar) o caminho da felicidade. 


Quantas vezes somos sumamente felizes e sequer percebemos! Se mantivéssemos essa situação ideal, se a usufruíssemos em sua plenitude e se não desejássemos nada, além dela, nossa vida transcorreria no que os poetas chamam de “mar de rosas”. Não é isso, porém, o que fazemos. Queremos mais, mais e mais, sempre mais, e nem tudo o que desejamos (diria a maioria) nos é conveniente, útil, saudável, benigno ou, sobretudo, factível. Em três tempos, a frustração, o ressentimento, a sensação de fracasso e a mágoa toldam-nos o céu que, nublado, não nos permite vislumbrar o resplendor das estrelas. E, num piscar de olhos, deixamos que fuja de nossas mãos o pássaro esquivo da felicidade. O poeta Vicente de Carvalho disse isso com elegância, classe e beleza. Escreveu, no terceto com que encerrou seu célebre soneto “Velho tema – I”: “Essa felicidade que supomos/árvore milagrosa que sonhamos/toda arreada de dourados pomos,//existe, sim; mas nós não a alcançamos/porque está sempre apenas onde a pomos/e nunca a pomos onde nós estamos”. E não é verdade? Somos ou não somos, pois, incorrigíveis trapalhões, imensos desastrados?!


(*) Jornalista, radialista e escritor. Foi editor do portal Literário do Comunique-se, do qual tive a honra de participar regularmente todas as quintas-feiras durante dez anos (parte destes anos já como um blog independente, cuja logomarca é criação minha). Pedro também trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (depois Bandeirantes Campinas, não sei se ainda atualmente), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos). Também tinha o blog O Escrevinhador.

Pedro J. Bondaczuk morreu no dia 9 de outubro de 2018. Mas, somente agora, dois anos e dois dias depois, soube de sua passagem. Confesso que estava afastado dele por razões político-ideológicas, pois ele era de esquerda e defensor do condenado em três instâncias Lula, assim como os demais colaboradores do Literário. E eu sou de direita e defensor, embora ex-ardoroso, do Presidente da República com mais de 50 milhões de votos, um destes meu, Jair Bolsonaro. Por isso, não estava enviando os meus textos ao Pedro, já não lembro por quanto tempo. Mesmo assim, meus contos foram humildemente reproduzidos por vontade dele e eu nunca me opus, nem sequer me senti indevidamente publicado por ele. Estava apenas afastado do Pedro e do Literário, jamais com raiva ou ódio dele. Ódio somente da esquerda e do Lula. Não me sinto culpado por isso, pois acontece. Quantas pessoas já não foram amigas um dia e morreram afastadas? 

Culpa só sinto por não ter sabido de sua morte na época em que aconteceu. E se eu soubesse teria prestado as devidas homenagens do mesmo jeito. E uma dúvida: será que eu já não sabia e esqueci? Mas acredito que não sabia não. Em 2018 eu não vivia uma fase boa. Descobri que tenho Síndrome de Asperger, mas também estava em depressão, de luto pela morte da lucidez da minha mãe, que hoje vive com saúde, mas acompanhada por cuidadoras e isolada em seu mundinho particular, fora da realidade. E também estava obcecado por uma ex-colega de pós-graduação que me esnobou depois que ficou famosa na Rede Globo. Felizmente, hoje, estou livre deste sentimento por essa arrogante que, ainda bem, se mudou para Brasília. Saudades só do Pedro, a quem desejo que descanse em paz. 

Depois de seguir o estilo que o Pedro fazia nos obituários de outros colaboradores, postando o texto do falecido, com o título Direto do Arquivo, e depois colocando o motivo da homenagem, encerro este post com o depoimento no Facebook de Mara Narciso, minha colega no Literário e amiga mais próxima do Pedro, no qual dá mais detalhes sobre a vida e a carreira dele e pelo qual fiquei sabendo da sua morte:

"Há dois anos, no dia nove de outubro de 2018, fiquei sem meu amigo virtual Pedro João Bondaczuk, nascido no dia 20 de janeiro de 1943. Nunca nos vimos e nem mesmo ouvi sua voz de radialista uma única vez. Foi uma aproximação literária, graças a sua generosidade e respeito para com todos. Para mim, foi uma morte súbita, porque, ainda que tivesse dificuldade de locomoção devido às sequelas de poliomielite, não reduziu a quantidade e nem a qualidade da sua escrita. No dia oito de outubro, como sempre fazia, postou em seus Blogs Escrivinhador e Literário. Neste último me acolheu, pois apoiava escritores em potencial, assim, minhas crônicas apareceram semanalmente, às quartas-feiras, no Blog Literário, durante nove anos.

Gaúcho de Horizontina - RS, descendente de russos, sua família se mudou para São Paulo, em busca de recursos, quando ele menino adoeceu e permaneceu alguns anos num hospital de apoio. O seu caso foi gravíssimo, e quase perdeu a vida, porque a doença acometeu também a respiração. Deslocava-se de muletas, mas sua inteligência voava.

Chegou a iniciar o curso de medicina, mas, se decidiu pela carreira de jornalista. Começou no rádio e depois, tornou-se filósofo e escritor, trabalhando em todas as editorias dos jornais Diário do Povo e Correio Popular de Campinas, cidade na qual se estabeleceu, casando-se e tendo quatro filhos e um neto.

Grande caráter, íntegro, cultíssimo e incansável, rei das citações (era criticado por isso), escrevia na primeira pessoa (alguns não gostavam disso), tinha uma caderneta no bolso onde anotava palavras e ideias que lhe viessem. Publicou “Quadros de Natal” e “Por Uma Nova Utopia” cujos direitos autorais foram doados a CVV – Centro de Valorização da Vida, lugar onde atendia, ouvindo e dando apoio emocional para a prevenção de suicídios. Escreveu, mas não publicou “Cronos & Narciso” e “Copas Ganhas e Perdidas”, assunto do qual detinha amplos conhecimentos. Tinha 18 livros escritos e poucos recursos financeiros, por isso esperava que alguma editora se interessasse pelos seus conteúdos. Era membro da Academia Campinense de Letras, desde 1992 e recebeu várias homenagens.

Pedro Bondaczuk, otimista e propagador de elogios (não fáceis, porque , quando não gostava, ficava calado), tinha hábitos educados na internet. Além dos muitos textos publicados em diversos meios virtuais, quando sua dezena de textos diários, do tipo mini-crônicas sobre um único tema, postados no Facebook, não recebia curtidas nem comentários, reclamava.

Era apaixonado pelo Prêmio Nobel de Literatura, desejava um brasileiro na premiação e, na época do evento, escrevia editoriais sobre o tema, analisando autores e obras. Eu e outros seguidores sorvíamos daquela fonte límpida e saborosa, dia após dia, aprendendo sobre alta literatura e tudo que nos fosse útil, um hábito cortado subitamente e que muito me entristece. Pedro, meu bom amigo, foi para mim, além de estímulo, uma inesgotável fonte de lazer e aprendizado de temática variada, aproveitando seu conhecimento profundo e argumentação de alta eficácia.


Perdemos um grande cérebro pensador, um precioso manancial de erudição e sabedoria do tamanho do oceano, ao qual reverencio com gratidão, já que muito me ensinou, produzindo, maciçamente, sem perder a exatidão e a categoria." 

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