BRINQUEDOS: FÁBRICA DE INFÂNCIA

Gustavo do Carmo

Imagem encontrada na internet

Duplicatas dos fornecedores de materiais, manutenção das velhas máquinas, despesas de limpeza, funcionários, impostos, contas de luz, telefone e água. Todas vencidas há meses e algumas protestadas. As dívidas aumentavam a cada dia sem nenhum lucro.

Seu Ladislau tinha até a antevéspera do Natal para honrá-las. Caso contrário, a mediana fábrica de brinquedos semi-artesanais, herdada do seu pai, Nicolau Filho, e criada pelo avô Nicolau seria fechada.

Bonecas de porcelana, de pano e de plástico, carrinhos de madeira, plástico e metal, malabaristas e vaquinhas articuláveis, jogos de tabuleiro e bolas de futebol. Tudo isso e outras coisas encantaram as crianças entre os anos trinta e oitenta, quando elas começaram a se desinteressar pelos brinquedos, preferindo os videogames na década retrasada e o computador e a internet de hoje.

Até os bebês, que mantinham a sustentação do negócio, estavam enjoando, preferindo precocemente os brinquedos eletrônicos que a Vô Nicolau, nome da fábrica, não produzia e, por isso, enfrentava dificuldades financeiras.

Aos sessenta e oito anos, Ladislau, diferentemente do pai e do avô, era magro, pintava o cabelo e não usava barba. Deles só puxou a simpatia e a generosidade com as crianças, empregados e distribuidores.

No entanto, seu bom caráter não era sinônimo de felicidade. Casou-se com a namorada da adolescência que o deixou viúvo quando morreu de câncer há uns cinco anos, dois meses depois de comemorarem bodas de prata. Com ela teve duas filhas. A mais velha virou engenheira e se mudou para os Emirados Árabes. A segunda faleceu em um acidente de trânsito com os amigos na flor da juventude.

E foi dela que ele começou a lembrar depois que recebeu a visita do oficial de justiça dando-lhe um prazo de uma semana para desocupar o imóvel. Enquanto se debulhava em lágrimas silenciosas pela filha morta a luz foi cortada.

Desesperado e sem nenhuma solução, o sexagenário pegou uma outra tradição familiar para dar um fim em sua vida: um revólver que pertenceu ao seu bisavô Noel. Colocou as seis cápsulas de balas douradas no tambor giratório da arma logo engatilhada e apontou para a cabeça, acima da orelha esquerda.

Uma mão abaixou a sua e lhe puxou a arma. A menina negra de cachos trançados apareceu subitamente. Observou o idoso com olhar piedoso. E falou:


— Você vai jogar fora o instrumento que vai lhe dar a oportunidade de reconstruir a sua vida?
— Que instrumento? Eu não tenho nada mais para salvar a fábrica de brinquedos que foi fundada pelo meu avô há quase oitenta anos e agora está à beira da falência.
—Tem certeza?
— Claro que tenho! As crianças não se interessam mais pelos produtos que eu fabrico. Só querem saber de video-games, computador e celular. Quando compram brinquedos de verdade só procuram os da moda: desenhos japoneses ou seriados americanos.
— Neste mercado atual as empresas precisam mudar para se adaptarem ao aumento da concorrência. O que você mudou na sua fábrica?
— Tudo. Antes a gente só fazia brinquedos totalmente artesanais. Só fabricávamos jogos, carrinhos e bonecos de madeira. A partir dos anos setenta começamos a industrializar um pouco e fabricar em plástico e borracha. Antes era somente eu, o meu pai e meu avô quem fabricava os brinquedos. Ultimamente estávamos com funcionários e máquinas leves industriais, mas com a queda do movimento todo mundo foi embora. Voltei a fazer tudo sozinho.
— Você conhece as crianças que compravam os seus brinquedos?
— Algumas sim. Mas outras não porque nós distribuimos para as lojas.
— Por que você não traz de volta as crianças que compraram os seus brinquedos?
— Como eu vou trazê-las? Todas já cresceram. Minha filha já morreu. E, como eu já disse, eu distribuí os brinquedos em lojas e papelarias. Sei lá quem comprou.
— Mas é possível trazê-las. Pelo menos as almas delas.
— Como assim? Vou ter que chamar um médium para baixar os fantasmas delas?
— Não. Elas virão em corpo adulto, mas o espírito será de criança.
— De que forma eu faço isso?
— Apele para a nostalgia.


A menina, que usava um vestido florido no estilo da década de cinquenta, desapareceu da mesma forma que chegou para salvar a vida de Ladislau. O velho fabricante de brinquedos chamou por ela, mas não obteve resposta.

Da misteriosa menina não guardou, aliás, nem a fisionomia. Ficou em sua lembrança apenas uma sugestão praticamente enigmática. De que forma usaria a nostalgia para atrair o espírito infantil dos antigos clientes de sua fábrica de brinquedos semi-artesanais falimentar? Súbita como a aparição da menina negra, a ideia para a solução do enigma proposto pela criança surgiu em sua mente: transformar a fábrica em um museu.

Da mensagem da menina Ladislau entendeu que as crianças que compraram os brinquedos de sua fábrica seriam hoje os adultos que voltariam para matar as saudades da infância. A nostalgia seria o grande negócio do museu da fábrica.

Desvendada a charada um novo velho problema lhe vem à mente: como obter dinheiro para transformar a fábrica deficitária de brinquedos em um museu da infância? Seu nome já estava sujo no banco. Não conseguiria mais empréstimo de financeira nenhuma. Mas uma mala direta mágica deslizou-se por baixo da porta de ferro no escritório às trevas. O folder personalizado dizia em letras garrafais e tridimensionais que o Sr. Ladislau tinha direito a um empréstimo consignado. As letras médias anunciavam que o crédito do cliente estava aprovado. Mas o texto minúsculo e serifado esclarecia que a taxa de juros era de dez por cento ao mês.

O preço pelo empréstimo fácil não foi empecilho para o velho Ladislau. Ele passou a noite na própria fábrica, sem dormir, pois não dava para passar em claro por causa da luz cortada. Acordou com o primeiro facho de sol que atravessou a claraboia sobre o seu rosto branco e enrugado. Separou os documentos necessários, tomou um banho demorado e perfumou-se com o aromatizante que usava em algumas bonecas fabricadas por ele.

Apareceu na porta da financeira remetente antes mesmo dela abrir. Tomou o café oferecido pelo corretor e conseguiu o empréstimo. Com o dinheiro obtido pagou as contas de luz, água e telefone, os salários atrasados e o décimo-terceiro dos quatro funcionários que sobraram, os impostos pendentes e as duplicatas parceladas.

De volta à fábrica, separou as máquinas industriais e as colocou à venda. Encerrou a produção dos brinquedos de plástico. Convocou os funcionários, entre eles os dos dois operários, a faxineira e a secretária. Recebeu a visita dos técnicos da operadora de telefone, água e energia para religar os serviços.

Motivado como nunca esteve e alegre como nunca o seu pai e seu avô foram, Ladislau orientou os empregados:

— Pessoal, recebi uma luz que me sugeriu transformar esta fábrica num museu do brinquedo. Vamos arrumar este galpão que eu quero trazer de volta as crianças que compraram os nossos produtos.

Uma faxineira menos instruída perguntou:

— Ai, meu Deus! Vai vir aquela criançada toda?

O operário igualmente ingênuo estranhou:

— Ué? Você não disse que a sua fábrica é antiga? As crianças devem estar todas velhas já!
— Calma, gente. Não virão todas de uma vez. Só espero que o museu seja bastante movimentado. E claro que as crianças do passado já estão grandes. Mas elas virão trazendo os filhos, os netos e a saudade de ser criança.

Os empregados gritaram em coro:

— Ah! Bom!

Ladislau ainda pediu que algum dos seus fiéis empregados lhe recomendasse um pedreiro e um pintor. Atendido, transformou em cinco dias a cinzenta fábrica decadente de brinquedos em um colorido museu da infância, batizada por ele de Museu do Brinquedo e Fábrica da Infância do Vô Nicolau.

As primeiras crianças a brincar foram os filhos dos funcionários. Estes, que deveriam reviver a infância, na maioria, a descobriram e aproveitaram o que a pobreza do passado não os deixou. Somente a secretária matou as saudades e trouxe de volta a alma infantil que a menina negra sugeriu.

No boca a boca vieram muitas outras crianças e seus pais saudosos. Estes ensinaram aos filhos o prazer de se divertir com os brinquedos do passado. Atraídos pelo grande movimento apareceram os jornalistas. E da repercussão dos seus trabalhos, ressurgiram, finalmente, as antigas crianças, que conservaram as almas que moviam corpos magros ou gordos, enrugados ou repuxados, cabelos brancos, pretos naturais ou pintados.

Cobrando ingresso, o velho Ladislau saldou os empréstimos, salvou a fábrica da falência e a transformou em uma fundação que atravessou mais de uma geração, pois o milagre de natal trouxe de volta também a filha engenheira do velho fabricante de brinquedos que estava nas arábias. Junto com ela e o marido francês e a filha de oito anos.

Penteando o cabelo de lã de uma boneca de porcelana, a menina negra assistia a todo aquele cenário movimentado e alegre. Transformou-se em uma adolescente branca de longos cabelos lisos cor de mel, muito familiar a Seu Ladislau, que se emocionaria ao reconhecer.

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