O TARADO INVOLUNTÁRIO

Foto: Portal Bella da Semana
Foto: Portal Bella da Semana

Conto de Gustavo do Carmo

Era o primeiro dia de Amado em seu novo emprego numa produtora de cinema. Foi indicado por um ex-amigo de internet, que queria retomar a amizade. A função do novo contratado seria de assistente do assistente de direção, justamente o tal ex-amigo, chamado Oswaldo. Na prática, o cargo seria de um contrarregra.

Logo de cara, numa sorte incrível, o diretor faltou e Oswaldo assumiu a direção por um dia. Amado, o “assistente reserva” passou a ser o “titular”. Outra sorte foi a produção de uma cena de nudez total feminina.


Amado adorava ver mulheres nuas. Especialmente as famosas e conhecidas. Dizia ter mais prazer com essas do que com as desconhecidas. Dizia que para ter tesão por uma mulher precisava conhecê-la vestida antes.

Darlene Baptista não era exatamente famosa, mas seria a primeira vez que Amado veria uma mulher nua pessoalmente. Mas o prazer da nudez alheia ficava em seus pensamentos e sonhos eróticos. E na sua casa, no seu banheiro. Na frente dos outros era um homem respeitador e educado.
Ficou constrangido e desviou o rosto no momento em que Darlene tirou o roupão para fazer a cena e revelava seus seios médios, de auréola levemente escurecida e pelos pubianos verticais pouco aparados.

Levou uma bronca do reatado amigo Oswaldo:

— Porra, Amado! Você é assistente do diretor! Tem que olhar para a atriz. Senão vou te mandar embora.
— Posso ir no banheiro lavar o rosto.
— Não pode, não. Você precisa se controlar. Precisa aprender a ver uma mulher nua sem maldade e sem ficar excitado. Mas no primeiro dia é normal.

Enquanto segurava a claquete eletrônica anunciando a cena 54, tomada 1, Amado finalmente encarou Darlene, que segundos depois de ouvir o primeiro “Gravando” de Oswaldo, a interrompeu.

— Desculpa, estou nervosa! Não quero que ninguém fique me olhando, disse, fitando os olhos em Amado.
— Tudo bem. Acontece. Relaxa. Toma uma água. Compreendeu Oswaldo, embora visivelmente contrariado. Em seguida ordenou ao assistente: — Amado, reforça a maquiagem no corpo dela.
— Não, não! Ele não! Eu quero uma mulher passando blush no meu corpo. Aliás, só tem homem aqui no set? Isso é machismo!
— Nós estamos tentando contratar. E a única é a Marineide, que está de licença-maternidade. Agora deixa de conversa. Podemos continuar a cena?
— Tudo bem. Vai.

Novamente, Amado se posiciona com a claquete, anunciando “Cena 54, Tomada 2!”, completado pela ordem de “Gravando” de Oswaldo. Darlene fica muda. Em seguida, desiste da cena e reclama:

— Ah, não dá pra gravar com esse cara me olhando! Diz, se referindo a Amado.
— Esse cara quem?  Indaga Oswaldo.
— Esse assistente! Ela diz, apontando para Amado.
— O Amado?  Pergunta, surpreso, esticando um dos braços e o apoiando nos ombros do amigo.
— Esse mesmo! É Amado o nome dele?  Ele me olha de um jeito estranho!
— Amado! Você tem que olhar para a cena, mas não encara a atriz! Senão ela fica nervosa, não completa a cena e a gente só vai sair na semana que vem!

Incrédulo com a acusação, Amado se defendeu por instinto:

— Mas eu não encarei. Juro!
— Olhou sim! Você parecia me foder com os olhos. Insistiu Darlene.
Câmera e maquiador já olhavam de cara feia para o novo assistente, que continuou, irritado:
— Desculpa, então! Se for para acusado de um assédio que eu não fiz, prefiro me demitir. Muito obrigado pela oportunidade, Oswaldo!  Mas eu estou fora!

Em seguida, já limpando as lágrimas dos olhos, saiu arrasado do estúdio. Oswaldo foi atrás aos gritos de “Amado, espere aí! Vamos conversar!”

Concordando em conversar, até mesmo para ouvir um pedido de desculpas, Arnaldo jurou não ter olhado Darlene de forma maldosa. Reafirmou que iria pedir demissão. Oswaldo garantiu ter acreditado no amigo. Disse que Darlene é difícil de lidar. Por ser casada com um cantor de MPB, se acha uma estrela, mesmo fazendo um papel secundário no filme, e anda tendo alucinações pelo consumo excessivo de maconha. Deu mais uma chance a Amado.

Desta vez, seria uma cena mais comportada. Sem nudez. Com Selene Ribeiro, considerada pelos colegas uma pessoa agradável e simples, principalmente fora da câmera. É uma mulher bonita, de pele clara e olhos verdes, mas com os seus cinquenta anos.

Amado estreou na função de contrarregra, segurando a lona branca para teste de câmera. Oswaldo reassumiu a sua função de assistente principal e de anunciar as tomadas. O severo diretor Pablo Hernandez enfim reocupou a sua cadeira.

Após a ordem de “Gravando!” do diretor, Selene fica muda. Ela encara Amado e muda completamente a expressão. Irritado, o diretor reclama:

— O que houve, Selene?
— Me desconcentrei. Desculpa. Vai de novo.

Na segunda tomada, ela olha para Amado, volta a ficar muda e reclama:

— Pablo, não dá! Esse contrarregra está me olhando de um jeito estranho!
— De novo, Amado?! Será que agora vai ser sempre assim? Reclamou Oswaldo.
— Por quê? Já ocorreu isso antes?  Pergunta Pablo, que não sabia do que houve na outra gravação.
— Semana passada, a Darlene também reclamou dele. Explicou o câmera.
— Olha aqui! Se fosse a primeira vez eu ia deixar passar. Mas já é a segunda! E com uma atriz querida nossa, que não tem o costume de reclamar. O senhor está demitido! Gritou o diretor Pablo Hernandez para Amado, que ficou completamente sem defesa. Não ia adiantar dizer que não olhou de maneira indecente. Amado repetiu o gesto da cena com Darlene e deixou o set já aos prantos. Desta vez, Oswaldo nada fez.

Antes de pegar o ônibus para o bairro de subúrbio onde morava, Amado foi arejar a cabeça na praia, próxima ao estúdio, em Ipanema. Sem poder dizer se é sorte, azar ou ironia do destino, acontecia um ensaio fotográfico nu com uma bela loura de seios fartos na praia. A sessão foi interrompida imediatamente, pois Wanessa Medeiros se assustou com o olhar de Amado em sua direção. A equipe de produção do ensaio correu atrás de Amado, que foi mais rápido e voou para o ponto de ônibus. No ponto, ficou encarando uma ruiva de saída de praia de renda e levou um tapa dela, que o chamou de tarado.

Em casa, pela internet, rompeu, mais uma vez, a amizade com Oswaldo, bloqueando-o no Skype e no WhatsApp. Na semana seguinte, foi acordado, aos tapas, por sua mãe, aos prantos, que estava acompanhada de três policiais militares e um civil, que segurava um papel. Mais precisamente um mandado de prisão por estupro.

Embora não tenha resistido à prisão, Amado saiu algemado, gritando “Não fui eu, mãe! Não fui eu!”, atraindo a atenção de vizinhos fofoqueiros e a imprensa. Na delegacia, foi informado de que foi apontado como o estuprador de três mulheres: Darlene Baptista, Selene Ribeiro e Wanessa Medeiros. Naquele mesmo dia, foi transferido para o presídio, de onde foi solto na semana seguinte. Absolvido.

Um rapaz com quem discutira por e-mail nos tempos de faculdade, que o chamara de criança e tudo, contou para a polícia que sua esposa, Marineide, que estava de licença-maternidade e foi visitar os colegas na produtora com o bebê, viu Oswaldo pagando Darlene e Selene e ouviu-os combinando para organizar falsas acusações de estupro contra Amado. Oswaldo queria se vingar por ter sido acusado de vender um conto do ex-amigo virtual para Wanessa, uma das acusadoras de estupro, como se fosse seu. Sem provas, Amado não o processou, mas foi realmente plagiado. 

Quanto ao olhar, realmente era de tarado, que o próprio Amado não percebia que virava os olhos e inquietava a língua. Mesmo olhar que afastava os colegas de escola e faculdade, especialmente as meninas.  

Amado fez fonoaudiologia para controlar a língua que procurava molhar seus lábios secos, mas passou a usar óculos escuros para disfarçar o olhar, que não conseguiu corrigir. Um mês após ser solto, Amado conseguiu, por conta própria, um novo emprego como assistente de um fotógrafo especializado em nus artísticos com mulheres comuns. Ao contrário da produtora de cinema, em seu primeiro dia de trabalho, Amado teve que acompanhar o ensaio de uma mulher negra e gorda.

Foi demitido imediatamente. Acusado de fazer cara de nojo. Foi processado por racismo e gordofobia.

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