Conversa


Os cabelos dela são vermelhos e macios como os lábios, as coxas grossas e as pernas torneadas. A aparência dela é uma complexidade de movimentos corporais que se abriga em retraimentos como as covinhas quando ela sorri. E seu hálito lembra leite com chocolate. 
Eu preciso falar seriamente com ela e ser claro e objetivo, então a chamei pro barzinho perto da sua casa a fim de bebermos uma cerveja e conversar. O meu objetivo é ser o mais direto possível, pois ela merece saber a verdade antes que o sentimento que nutre cresça a ponto de se tornar algo bem mais sério. O meu objetivo é terminar com ela. Mas eu já sabia que sua presença não me ajudaria. Ela veio com aquelas calças apertadas em seus fartos culotes e eu tive que procurar desviar o tempo todo o olhar daquela deliciosa porção de seio que saltava de seu decote. Um deslize e meu objetivo estaria arruinado.  
O que me deixou intrigado foi sua tristeza repentina do outro lado da mesa quando a cerveja chegou. Seus olhos encaram tristes o líquido dourado. Uma contemplação mística sai de seu olhar e atravessa a cerveja perdendo-se no nada. Ela bebe um grande gole e volta a cravar seus olhos no copo.    
Ela e seus olhos azuis entediados como um lago.  
Ela e a sua sinfonia de suspiros exaustos.  
Seus olhos agora pareciam algo se diluindo. Algo se apagando.  
Não é possível que ela saiba da minha decisão. Bem, isso agora não importa. Eu vou fazer o que precisa ser feito. Eu vou dizer o que planejei falar. Vou abrir o jogo. Vou sim. Nesse momento minha mente grita “cínico”. E grita “egoísta”. E grita “idiota”. Mas eu faço ouvido de mercador e respiro fundo. Ela precisa saber que existe outra pessoa.  
Nesse momento ela encara meus olhos. O que eu vejo é uma coleção de homeostases. O cheiro dela me traz memórias nítidas. Lembro da forma como ela amarra o cabelo com um malabarismo de mãos e coloca a haste de madeira pra prender os fios. Seus trejeitos são deliciosos e a forma como as rugas se formam em sua testa quando ela tem uma dúvida é encantadora. Ela dobra os dedos sobre a palma da mão e olha suas unhas, depois os estica olhando de longe. E me encara novamente, esperando.  
A hora chegou.  
Agora eu encarnarei um palestrante falando sobre o amor e toda a sua plenitude. A finitude das coisas. O fato de sermos humanos e susceptíveis a outros desejos. Eu direi a ela que sangue corre em minhas veias. Falarei sobre hedonismo. Mostrarei que não menti quando disse que a amava. Direi tudo o que tá entalado na minha garganta e vomitarei mais. O que eu faço agora é beber um longo gole de cerveja pra tomar coragem. Que ironia. Então quando fui abrir a boca ela, ainda me olhando nos olhos, me interrompe.  
“Eu tô com câncer." 
O que se seguiu foi um silêncio fúnebre. Tudo parecia distante de mim, como se eu não conseguisse tocar nada. Nem nada pudesse me tocar. Esse hiato era preenchido pelo borbulhar da cafeteira e do burburinho das pessoas que pareciam cada vez mais longe e mais pequenas. Então, como compreensão do meu silêncio, ela tomou o último gole de cerveja, levantou-se e foi embora. 
Hemerson Miranda

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