OBRIGADO, MIGUEL! - APERTOU O PIRULITO COM MAIS FORÇA



de Miguel Angel (in memoriam)



(...) Nessa aventura nunca sonhada pela menina, o medo começava a virar terror de desconhecidos pesadelos. Chegando ao topo da escada, Iracema teve de soltar a garota para empurrar com as duas mãos a tampa que fechava uma estreita passagem.

Ao abri-la, forte luz e mistura de perfumes as invadiu. Iracema desapareceu por ela. Entrando pela abertura discreta do assoalho do banheiro, ela era observada por um Ricardo Alvarenga nu, apoiado na borda de ampla banheira por onde escapavam vapores e aromas de sais. No sorriso debaixo do bigode e no olhar úmido tremiam e brilhavam sincopadamente a luxúria e o desprezo. Iracema, de cócoras, tentando não olhar para ele, hesitou, temerosa de falhar nas incumbência do patrão e nas quais nunca conseguira habituar-se. Mas os poucos segundos que demorou foram demais. Na penumbra da escada, o tempo era outro: esperando pela tia que demorava a voltar, a menina sentiu de repente seu novo terror crescer mais que o medo de apanhar e apavorada quis voltar para casa. Vacilou para se livrar do pirulito que segurava, e tentou descer apoiando-se na úmida parede apenas com uma mão. Iracema já esticara o braço pela abertura, e vendo-a afastar-se degraus abaixo, gritou: "Fica quieta, moleca!"




Tudo em dez segundos: o grito de Iracema ecoando nas paredes do poço aumentou o pavor da pequena fugitiva. Tentando olhar para o alto, em direção à tia, foi caindo sem um grito, ouvindo-se somente o ruído do corpo batendo nos degraus, até chegar ao chão e ficar imóvel. Em silêncio, um estertor final apertou o pirulito com mais força.



No banheiro, Alvarenga entendeu tudo antes da menina atingir o chão.
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Fragmento do capítulo: "SÃO PAULO, CEMITÉRIO DO CAFÉ. / "CAIPIRÃO RUBIÁCEA", PIERRE E SUA LÍNGUA NORDESTINA. / CONSPIRAÇÃO DE TENENTES E PAULISTAS "CARCOMIDOS" Do romance de Miguel Angel Fernandez "A CENA MUDA"

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