Cerveja




Ele


Estou sozinho e neste momento sou mais eu do que sou durante o dia todo. Não estou diluído na presença do outro, não estou limitado diante de julgamentos nem soterrado sob subjetividades alheias.

Isso não dura muito.

Meia hora depois estou em um pub, sua arquitetura irlandesa e sua decoração esverdeada, compartilhando uma cerveja de trigo com uma amiga. Não entenda errado, isso aqui não é um encontro, é só uma coisa que costumamos fazer umas três vezes por semana: conversar e beber. Ela não gosta de mandar mensagens, eu não gosto de falar pelo telefone, então combinamos de fazer isso sempre que podemos, o bom e velho cara a cara. Não é que ela não seja atraente, ela é e daqui a pouco a descreverei para você ter a ideia, e nem é que eu não seja interessante, pois, segundo ela mesma, meu "intelecto espalhado na minha magreza corporal" a atrai. Sim, ambos somos conscientes de que existe um pêndulo aqui nessa amizade, que por vezes oscila para que se transforme em algo maior, mas há um acordo tácito, mútuo e silencioso em não permitir que passe disso para que nada se estrague. Até quando isso vai durar? Não sabemos.

Estamos do lado de fora do pub, sob a luz morta das estrelas, porque também estamos fumando. Ela expira círculos de sua boca vermelha enquanto coloca uma mecha de seus cabelos brilhosos e acobreados para trás da orelha. Eu gosto da franja que ela deixa na altura de suas sobrancelhas. Gosto do formato de seu rosto, quando seu sorriso se abre e as linhas acentuam as maçãs de sua face. Seus cabelos, todas as células visíveis dele já morreram. Eu penso nisso suspenso em minhas próprias elucubrações enquanto olho para ela. Aquelas mechas luminosas estão mortas, sem vida, mas ela continua lavando com xampu, usando condicionador, o hidratando. Ela toca, limpa, cuida, penteia, corta uma coisa que está morta. Admito que, apesar de morto, é lindo e muito cheiroso.

Enquanto bebo eu trituro asinhas de frango, vermelhas de tão apimentadas. Ela, por ser vegetariana, belisca a batata frita. Há uma sublimidade nesses pequenos detalhes, nessas banalidades que, como os contornos de um desenho infantil, nos formam e formam o outro. Ela me olha com rugas entre as sobrancelhas e um sorriso meio torto.

"Quer me deixar envergonhada?"

"Desculpe, só fiquei absorto."

Ela sorri e nesse ato um mundo de compreensão se desdobra entre nós em que palavras não são mais necessárias. Temo perder isso. Um dia sei que perderei. E pior, sei que um dia, depois de perder, não me importarei mais. Mas a lembrança dela, qual fantasma agradável, persistirá pelo resto da vida. As pessoas costumam dizer que ninguém é insubstituível, mas eu discordo. Cada pessoa é única. Depois dela podem surgir pessoas que ocupem o seu lugar, mas esses lábios e seu sorriso sutil são únicos, seus olhos com uma opacidade fascinante, são únicos. A pessoa que ficar no lugar dela pode até ser melhor, mas não será ela.

Quando ela coloca a mecha rebelde para trás da orelha eu consigo ver perto de sua axila um adesivo de nicotina. Lembro que ela está tentando parar de fumar. Só se dá ao luxo de pegar num cigarro quando estamos conversando nesses momentos só nossos. Ela olha minha boca, meus lábios oleosos, olha minha mandíbula enquanto mastigo o frango. Sempre existem esses silêncios que iniciam nossas conversas, como preparação para uma luta de katanas, o vazio do caos que antecede o fiat lux. Quando olho para seu ombro nu, nesse ponto onde o ombro e o pescoço se encontram, suspiro profundamente e falo:

"Olha que engraçado: faz frio aqui fora, mas a cerveja tá suando. Não é engraçado sentir que faz frio e ver as coisas derretendo?"

Ela gosta quando eu noto essas coisas aparentemente irrelevantes. Ela sorri aquiescendo. Eu gosto quando ela demonstra que gosta do que eu noto.

"Isso me faz pensar o quanto de uma pessoa pode cair, quebrar, derreter antes que algo realmente importante seja perdido."

Por vezes nossas conversar parecem um duelo de aforismos. Frases de biscoitos da sorte entre banalidades. Na primeira vez que nos conhecemos, eu estava sentado no balcão de uma padaria esperando um café com misto quente. Ela sentou do meu lado e pediu um suco de laranja, então começamos a conversar porque ela depositou um livro escrito por uma autora chinesa que eu estava terminando de ler e isso foi o que deu início à amizade. Dias depois ela me contou que quando me viu na padaria a impressão que passei para ela foi essa:

"Você estava ali sentado e parecia esvaziado. Como se tivessem extraído todo o seu conteúdo, espremido até a última gota e deixado apenas o invólucro."

Quando a cerveja termina, pedimos outra, pedimos uma IPA. Comungamos do gosto pelo amargor e o aroma gramíneo desse estilo. Eu apresentei vários estilos a ela e sempre foi receptiva, nunca temendo experimentar algo novo, mesmo diante das minhas explicações de aroma e gosto, que por vezes são bizarras. Ela pega uma batata e dá leves mordiscadas enquanto fala. O aroma lupulado invade nossas narinas.

"Lembra quando você me fez experimentar IPA pela primeira vez?"

"Vagamente. Fiz alguma coisa idiota?"

"Não. Eu só quis cuspir."

Ambos rimos e a lembrança me vem rápido. Geralmente é o que acontece com a maioria das pessoas. Esse tipo de cerveja é bem amargo e deixa um retrogosto que não muitos apreciam. Tem quem fale que o gosto é de chá sem açúcar, geralmente falando que é um chá ruim. Na primeira vez que experimentei fui fisgado pelo aroma, mas demorei a me acostumar com o sabor, vindo em seguida a ser meu estilo preferido.

"Aí nas próximas vezes que bebemos eu fiquei viciada pelo estilo."

"Amarga, como a vida."

"Isso, foi exatamente isso que você disse quando me falou dela."

Ela sorri, sua boca entreaberta e seus olhos me encarando, e essa imagem paralisa diante de mim, se congela na linha do tempo. A alegria que eu sinto vai se diluindo em um mar viscoso e denso de tristeza, de melancolia. A sensação que eu tenho é de perda iminente. Parece que esse é o último dia que a verei. O que eu sinto é que isso aqui é uma despedida. Não consigo explicar, nem sequer entendo, mas é esse sentimento que começa a me corroer desde dentro, criando um nó na garganta, uma ardência nos olhos. Porque eu não quero perdê-la, não quero que ela vá embora. Meu desejo é de agarrar sua mão para que ela não se vá, mas eu também pareço paralisado diante do medo. Os sons se distanciam, as coisas vão perdendo suas cores, as formas vão se esvanecendo, tudo perde a substância.

Ela

Hoje é o sexto dia desde que ele chegou. Essa é a sexta personalidade que ele revela. Não sei quantas mais há, mas essa foi a que lhe arrancou lágrimas aos cântaros, que fez ele deitar no chão em posição fetal e soluçar em convulsões, literalmente.

Hoje ele é um amigo inteligente e apreciador de cervejas artesanais que nutre uma amizade muito forte com uma mulher da qual ele não dá detalhes a não ser físicos. Ironicamente, a descrição dela é justamente a minha imagem e ele foi bem fiel.

Ontem ele era um leitor compulsivo e apaixonado por um escritor da mesma cidade. No diálogo ele tentava flertar com o autor, elogiando sua escrita, seu estilo e sua criatividade, o que parecia uma massagem em seu próprio ego. A descrição que ele faz de todos os detalhes é impressionante. Cada história tem suas peculiaridades e ele sabe como dar vida a cada uma delas. No primeiro dia ele era um otaku e demonstrou profundo conhecimento da cultura e arte japonesas, relatando uma conversa com outra fã desse estilo e enumerando diversos animes, mangas e filmes que eu tive que dar uma pesquisada e inclusive assistir e ler alguns, tão curiosa ele me deixou.

Devo admitir que estou excitada com esse paciente. Ele me lembra um escritor, criando seus mundos e seus diálogos, expondo suas conversas interiores, vomitando seus pensamentos, sua visão múltipla do mundo, da vida. Ele sequestra esses personagens, pessoas sem passado e sem futuro, e os encarcera numa prisão estagnada do tempo, os usando conforme sua vontade, às vezes os condenando a repetir a mesma coisa para sempre. A consulta se parece com uma leitura, quando eu me entrego à minha própria solidão para ler um bom livro.

Hoje ele pediu leite e biscoito. No seu conto ele bebia o leite como se fosse uma cerveja cara, extremamente complexa, salientando as notas do aroma que seu olfato capturava, e os biscoitos, ele os mastiga com mais veemência do que eles merecem, imaginando que são asinhas de frango crocantes, vermelhas e apimentadas. Ao mesmo tempo que é assustador também é maravilhoso. Me sinto de volta aos 10 anos, quando meu avô me colocava em seu colo e me contava as histórias mais fantásticas que, soube depois que cresci, ele mesmo as criava. Eis a linha tênue entre loucura e criatividade.

Quando ele começa a desabar em prantos eu consigo sentir sua dor na sensação de que vai perder sua amiga, mesmo que não a entenda. Sinto compaixão, sinto pena, na verdade. Então, depois de curtir o rosto com profusas lágrimas e sua face se tornar muito vermelha, ele volta a se sentar com uma pose séria, postura ereta, apática, pragmática e, olhando profundamente em meus olhos enquanto cruza suas mãos na mesa, sorri e me diz:

"Amanhã vou lhe apresentar a minha mãe."

A mãe dele morreu há 8 anos. E o que minha língua pede agora é uma cerveja bem gelada.


Hemerson Miranda

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