OS TEXTOS DO IRMÃO MORTO



Conto de Gustavo do Carmo

Passados quatro meses, Patrícia já estava aparentemente recuperada do choque com o suicídio trágico do irmão mais novo – que se jogou do sexto andar do prédio onde morava, depois que viu um ex-amigo fazer sucesso com um filme baseado em um conto seu, sem autorização – quando resolveu procurar uma editora para publicar, de forma póstuma, os textos do escritor fracassado.

Quando vivo, Péricles Soares nunca tinha conseguido um emprego e sonhava ser um escritor famoso, daqueles bem esnobes que pisaria nos ex-colegas de faculdades e ex-amigos de internet que o desprezavam e o plagiavam. Ele só queria seguir a carreira literária, realizada por muitos, mas que para ele diziam ser impossível.

Patrícia mesmo estava entre os que pressionavam o irmão a deixar os sonhos de lado e correr atrás de uma ocupação. Ajudava o pai nas cobranças para fazer um concurso público, que Péricles tinha ojeriza, pois, para ele, fazia parte de uma indústria lucrativa para cursinhos, apostilas, comissões organizadoras e o mais importante jornal que cobria o segmento. Ela mesma o desestimulava, dizendo que os contos eram bobos e mal escritos. 

Até que um dia, por insistência da mãe que sempre o incentivava, criou coragem para vasculhar o notebook que o irmão morto tinha deixado. Achou uns quinhentos contos, cem novelas curtas, oito mil microcontos e dez romances, estes inacabados. Quase deletou tudo, mas a mãe e o seu marido a impediram.

— Não faça isso! Pode ser uma mina de ouro! Disse o marido.
— Ah! Deixa de bobagem, amor! Só tem histórias bobas aqui, cheias de erros de gramática.
— Deixa eu ler para ver se são bobas mesmo!
— Você não acredita em mim, né? Nunca acredita em mim!
— Ah, não vem fazer drama, não! Me dá esse notebook que eu leio.
— Então leia. Faz o que você quiser.
Arnaldo, o cunhado de Péricles, se encantou com os contos. Leu uns dez. Salvou todo acervo no cartão de memória. Insistiu.
— Querida, nós temos uma mina de ouro, sim! Seu irmão era brilhante, genial! Alguns realmente eram bobos, mas a maioria é ótima. Dá pra viver com renda de classe média com os textos do seu irmão durante anos. Pena que o seu irmão não correu muito atrás.
— Pois é. Agora não precisa mais. Ele está morto!
— Mas as editoras só valorizam textos de gente morta. E quem vai ganhar dinheiro é você, que é irmã.
Patrícia deu um murmuro de resignação enquanto o marido continuava falando.
— Eu vou falar com a minha irmã, que é amiga da sócia de uma editora e você liga.

Contrariada, Patrícia concordou.  Já com o telefone da editora, que é cliente da empresa de clipping onde trabalha a cunhada, ligou.

— Boa tarde, eu tenho uns originais comigo e gostaria de marcar um dia para apresentá-los. Disse Patrícia.
— Desculpe, nós estamos com o cronograma lotado para os próximos três anos. Disse a sócia da editora.
— Eu sou cunhada da Amanda, que é sua amiga.
— Ah! A Amanda! Sou muito amiga dela! Por que não falou antes?
— Então.
— Mas, mesmo assim, o nosso cronograma ainda está lotado. Mesmo que eu fure a fila, só vamos poder publicar no final do ano que vem.
— Olha, na verdade, os textos que eu quero publicar não são meus. São do meu irmão, que morreu há seis meses. Eu apoiava tanto ele. Mas nenhuma editora aceitava publicá-lo. Ele era muito incompreendido, coitado. Quero publicar esses textos em respeito à memória dele.
— Sério? Por que não me falou antes? Então traz aqui que eu quero dar uma olhada para ver se são bons mesmo.
— Pois é. Por isso eu quero marcar uma hora com você. Nem penso no dinheiro, mas realizar o sonho dele. Finalizou, enxugando as lágrimas de crocodilo que começavam a escorrer.
— Pode vir na segunda-feira da semana que vem, às duas horas?
— Pode ser às seis? Eu trabalho até às quatro e até chegar ao Centro...
— Está bom, então!

Conforme combinado, Patrícia foi até a editora. Demorou um pouco para ser atendida por Luane, a amiga da cunhada, pois era um dia cheio. Entregou o cartão de memória, que a editora copiou em seu computador no escritório.

Uma semana depois, Luane ligou para Patrícia maravilhada com os contos de Péricles. Conseguiu autorização do sócio majoritário para publicar inicialmente uma nova coletânea de 40 contos, um novo romance e republicar os dois livros que o finado lançou em vida.

O romance, em publicação paga, era muito mal escrito, mas vendeu a metade dos 300 exemplares.  O texto foi totalmente revisado e corrigido. A coletânea de contos, publicada por uma editora que boicotou Péricles, evitando a divulgação, foi o outro relançamento.

Seis meses depois da conversa entre Patrícia e Luane, os quatro livros já estavam prontos com dois mil exemplares de tiragem cada, noite de autógrafos agendada em cinco capitais do país e ampla divulgação na imprensa, com o obituário in memoriam de Péricles.

Patrícia ia autografar os livros. Seria feita uma homenagem póstuma ao autor, com direito a discurso emocionado da irmã e do pai, que queria comprar 50 exemplares de cada livro, mas foi impedido pela filha. A mãe, muito idosa, não quis ir, com medo de se emocionar demais e passar mal.

No Rio, só compareceram os parentes e amigos de Patrícia. E poucos, no máximo vinte. Destes  vinte, só cinco compraram. Nos lançamentos em São Paulo e Belo Horizonte não apareceu ninguém. O de Brasília e Salvador foram cancelados. Depois, o livro não vendeu mais nada. A editora teve um enorme prejuízo e rompeu o contrato com a empresa onde a irmã de Arnaldo trabalhava.

Patrícia ficou envergonhada com o fracasso dos contos do irmão. Esbravejou contra o marido, aos prantos:

— Eu não disse que os contos do meu irmão eram uma porcaria??? Com que cara eu vou olhar pra sua irmã, que quase perdeu o emprego?

Arnaldo ficou quieto, dando razão a esposa. Patrícia sonhou com o irmão que confessou:

— Eu roguei uma praga contra vocês. Se eu não fiquei rico com os meus contos quando era vivo, ninguém vai ficar.

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