Ele acordou, mesmo já estando com os olhos abertos.
A
realidade bateu forte em seu rosto e suas garras arranharam-lhe a alma.
O que sentiu no olho esquerdo foi uma lágrima brotar, escorrer na sua
pele e morrer em sua boca. Um gosto salgado que logo tornou-se amargo e
quase lhe fez vomitar. Esse sentimento o fez erguer a fronte e encarar a
imagem à sua frente.
Pessoas
choravam com cabeças baixas e lenços nas mãos em volta de um caixão cor
marfim. A maioria ali tinha rostos conhecidos, mas ele parecia
invisível para cada um. Então, se deteve no caixão. Sabia quem estava
lá. Mas só agora, no exato momento em que sua mente por fim concebera a
situação, é que sentiu um ardor no peito. Talvez algo perfurando-lhe a
carne não fosse tão doloroso quanto isso que o mastigava por dentro e
que parecia prestes a cuspir.
Como
estava sentado, não podia ver dentro da abertura do caixão, mas a
presença, mesmo sem vida, ainda fazia efeito sobre ele. De todas as
pessoas no mundo, jamais imaginara que seria a sua mãe que estaria sendo
velada diante de si. Refletiu, então, sobre a miséria e a brevidade da
existência humana. Meras folhas secas sacudidas o tempo todo pelo vento,
até desprenderem-se do galho e voarem sobre o abismo que temerosamente
todos chamam de morte. Um suspiro de algum deus. O cuspir de repugnância
de alguma entidade. Sim. Um cuspe. Tanto esforço para ser mais belo,
mais inteligente, mais rico, mais feliz, nutrindo o desejo de que nada é
suficiente para quem o suficiente não é o bastante para isso. Terminar
do mesmo jeito que veio ao mundo: sem nada e só.
Em
algum lugar do recinto, ouviu uma risada de criança. Crianças não
entendem muito bem de morte. Ou pelo menos é o que nós, adultos,
achamos. Mas o riso evocou lembranças. Os dentes amarelos de sua mãe se
abrindo quando chegava da escola. Lembrou dos desvios quase
contorcionistas que fazia para escapar de beijos e abraços que ela
pretendia lhe dar. Percebia que chegava de mau humor assim que pisava em
casa, mesmo que sua mãe lhe recebesse com um sorriso. Claro que o mau
humor passava assim que sentia o cheiro das broas quentinhas, recém
saídas do forno. Mas óbvio, ele não se sentaria com a mãe para lhe
contar como foi na escola e saborear com ela o que ela mesma havia
preparado pensando nele com tanto carinho. Pegava o prato e corria para o
quarto, sob o protesto da mãe, cuja voz morria conforme ia se
afastando.
Essas
lembranças agora lhe doíam no peito. E a dor lhe trouxe outras
recordações. Olhou para o braço e viu a cicatriz de uma queda feia que
sofrera quando caiu do skate e saiu ralando a pele no chão. Carne viva.
Lembrou do pulsar do músculo e do trincar dos dentes por causa da dor. A
visão de sua mãe lhe fazendo um curativo estava vívida agora. Como
vivas estavam suas palavras agressivas, mesmo que a mulher estivesse lhe
tratando e sendo tão carinhosa com palavras. Levantou-se naquele dia e
gritou com ela. Não lembrava o motivo, mas constatara que havia sido um
idiota. Certamente foi o mau humor que fizera-o agir daquela maneira.
Não que isso justificasse. Fechou os olhos, envergonhado.
O
cheiro dela, o som de sua risada, a forma como ela segurava a xícara de
café, tantas peculiaridades passavam em sua mente como num slide. Tudo o
que aparentemente ignorava, sua mente guardava como um registro eterno,
para sua desgraça.
Tudo
aquilo, junto com várias outras lembranças, se materializavam à sua
frente: imagens de sua mãe chorando, sendo espancada pelo pai, saindo de
casa com o filho, trabalhando duro para sustentá-lo, tudo isso passou. E
não havia volta. As memórias não podiam ser tocadas e sequer
modificadas. Ele sentiu a impotência inerente à existência. Sentiu quão
fútil e irrisório é o momento em que achamos ter controle sobre as
coisas, sobre nós mesmos. Seus braços não alcançariam seus desejos, nem
que suas pernas ajudassem.
Então tomou fôlego e levantou.
Arrastou-se,
sob os olhares das pessoas ao redor, até o caixão e a viu. Sua mãe, de
olhos fechados e tez pálida, como se sua alma quisesse se mostrar ainda
naquele corpo. Os cabelos grisalhos emolduravam o rosto já com rugas,
cuja beleza não era exterior, mas emanava de dentro mesmo assim.
Tentou tocar o vidro da abertura do caixão, como um último adeus, até dar-se conta do metal que prendia seus pulsos.
Seu
coração acelerou e sua respiração ofegou. Olhou ao redor, para os
rostos cheios de curiosidade e condenação. Olhou para trás e viu que
dois policiais o encaravam. Ele riu, perguntando o que era aquilo.
Começou a se exaltar, levantando a voz e exigindo que alguém lhe
explicasse o que significavam aquelas algemas. Os policiais se
aproximaram e ele começou a se debater, gritando freneticamente enquanto
ouvia as vozes acusadoras lhe chamando de assassino.
O
mundo girou. E de repente, parou. Tudo parecia ter congelado. Então
viu, em sua mente, o motivo de tudo aquilo estar acontecendo. Viu o
relógio na parede da cozinha marcando meia noite e quinze. Viu sua mãe,
com olheiras, rosto cansado, sentada na mesa olhando para ele e
indagando sobre onde estivera. Viu-se abrindo a geladeira para pegar uma
lata de cerveja, ouvindo por detrás de si a voz da mãe se alterando um
pouco, querendo respostas. Viu uma faca descansando na pia. Viu a
cozinha girar. Viu sua mãe de boca aberta olhando para ele entre soluços
e lágrimas. Viu sua mão direita coberta de sangue e a faca no chão. Viu
o corpo da mulher que lhe dera a vida cair na sua frente, entregando-se
à morte. Depois disso, só escuridão.
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