Aqueles Dias

Por @hemersomn



Meu nome é Priscila. Tenho 35 anos, sou gerente numa loja de roupas e faço faculdade de publicidade. Sou casada a 5 anos com um homem 5 anos mais novo, mas que aparenta ser mais velho que eu, o que me deixa muito feliz. Eu tenho uma vida feliz. Um casamento feliz. Eu sou feliz. Mas não hoje.

É que eu acordei "naqueles dias". Sim, naqueles dias em que meu marido me define como "a encarnação da inconstância." É óbvio que ele exagera nessa definição. Admito que fico um pouco chata, mas não transformo qualquer detalhe em "uma catástrofe de proporções bíblicas", como ele costuma dizer. 

Quando eu chego da faculdade ele já está em casa e hoje não foi diferente. Lá estava ele, só de bermuda, cabelo ainda molhado e despenteado, sentado no sofá jogando vídeo game. Eu sempre sorria quando chegava e o via assim. Mas não hoje. Aquilo me irritou profundamente. Os cabelos molhados estavam respingando no sofá. E aquele jogo! Maldito jogo! Não sabia o que ele via de divertido ou interessante num jogo onde você corre atrás de zumbis pra matar.

- Oi, amor. - ele falou sem sequer tirar os olhos da tv.
- Oi.
- Tudo bem?
- Tudo.

Não, não estava tudo bem. Acho que deu pra perceber, pois coloquei meus livros na mesa de centro com certa força. E ele ao menos poderia ter olhado para mim. se eu tivesse chegado com outro homem, com certeza ele nem ia perceber.

- Aconteceu alguma coisa, meu bem?
- Não. nada.

Ele colocou o jogo em pausa e olhou pra mim. Eu fingi ignorar tudo que estava acontecendo. Coloquei minha bolsa no sofá e já ia saindo, quando ele falou.

- Nada mesmo ou é daqueles "nada" que encerra um monte de coisas?
- Já disse que nada.

Caminhei em direção à cozinha, mas ele me segurou pelo braço e quis me dar um beijo. Eu desviei dizendo que ia comer alguma coisa. E ele ficou parado na sala. Fui pra a cozinha e senti o sangue ferver em minhas veias quando eu ouvi o barulho do jogo sendo tirado da pausa. "Ela quer ficar sozinha", ele deve ter pensado. Claro. Homens são assim. E eu esperei. Mas claro, ele não veio até mim. Foi isso que me fez testar a durabilidade da cozinha. Abri e fechei a gaveta com força, assim como a geladeira e os potes. Se isso não chamasse a atenção dele, não sei mais o que chamaria. Então ele apareceu na porta com um sorriso no rosto. Aquele sorriso lindo que só ele tem. O mesmo sorriso que me derreteu tantas vezes. O sorriso que naquele momento eu queria ver quebrado pela panela de pressão que eu estava disposta a jogar na cara dele.

- Ok, Priscila, o que houve?
- Nada.
- Que conversa de nada. Se não fosse nada você não estaria tentando derrubar a cozinha. Tá, pera. Larga essa faca.
- Não é nada, David. Volte pro seu jogo.
- Esquece o jogo. Eu te faço companhia.
- Não quero companhia. Quero ficar sozinha.
- Tem certeza de que não quer conversar?
- Absoluta.
- Ok, você tá naqueles dias, né?

Claro que a expressão no rosto dele mudou imediatamente. Faíscas saíram dos meus olhos na direção dele. Ele sempre me pedia pra falar quando estivesse "naqueles dias". Mas para que eu falar? Ele não podia perceber sozinho? Eu sempre percebo quando ele não está bem. É pedir muito, prestar atenção em mim?

- Volte pro seu jogo, David. - eu falei empunhando uma faca de pão.
- Ok, ok. Qualquer coisa é só me chamar.

E ele saiu. Isso mesmo! Ele saiu! Voltou para o maldito jogo. Me deixou lá, sozinha. Mesmo vendo que eu não estava bem, ele me deixou lá, unicamente para voltar ao seu joguinho idiota. Fiz um sanduíche e abri uma latinha de chá gelado. E nada. Ele não voltou. Aí me deu vontade de chorar. E foi isso que fez ele voltar para a cozinha. Eu solucei. E não, não foram lágrimas de crocodilo. Eu chorei de verdade.

- O que foi, meu bem? - ele me abraçou por trás e por um momento eu me senti bem melhor.
- Nada.
- Como nada, Priscila? Não se chora por nada.

Homens. Eles não entendem mesmo. Ou não querem entender.

- Não tenho nada. Volte pro seu jogo.
- Não vou mais jogar. Quero saber o que você tem. 
- Não tenho nada, sério.
- Então vamos conversar.

Isso não daria certo. Eu sentia. Cada fibra do meu corpo clamava por solidão ao mesmo tempo que pedia companhia. Mas as próximas palavras que ele estaria prestes a dizer, eu sabia, desencadeariam uma guerra. Ele poderia ter ficado calado, mas não. Ele "queria conversar".

- Você não imagina o que a Carol fez no trabalho hoje.

Carol é a encarregada dele. 5 anos mais jovem. Peitos grandes. Bunda arrebitada. Loira. E extremamente repulsiva. Sim, minha expressão mudou completamente. O nome daquela criatura entrou em meus ouvidos como torrente e ecoou no meu cérebro como uma reza satânica. Mas eu respirei fundo. E, para minha surpresa, até esbocei um sorriso. Certo, parecia mais um derrame facial, mas ele acreditou ser um sorriso.

- O que ela fez, David?

Eu escutei atentamente, mas eu escutei muito mais o que o corpo dele dizia. Sim, pois a linguagem corporal não mente nunca. Eu queria saber porque ele abria aquele sorriso quando estava falando dela. O que ele falou foi algo a ver com um pedido que já tinha sido concluído, mas ela teimava em que ainda estava pendente. Para ele aquilo era engraçado. Para mim era o prelúdio de um divórcio.

- Ela parece gostar muito de você.

E ele pensou que as rugas que fez na testa iam me convencer de alguma coisa, só pode ser. E sorriu. Eu me segurei na cadeira para não voar em cima dele. Sorrir? Eu estava falando sério e ele vem mostrando os dentes para mim. Eu tenho que suportar cada uma.

- Você vai começar com essa conversa de novo?
- E eu terminei ela alguma vez?
- Priscila, por favor...
- O que foi? Não tenho culpa de você dar tanta atenção a ela. E para que esse sorriso quando fala dela?
- Sério?
- Sério, David.
- Ok, você não está querendo conversar. Vou tomar banho e me aprontar para dormir.

Levantou-se e foi em direção a porta. Meu coração já estava na garganta. Ele ia me deixar só de novo. Como assim " você não está querendo conversar"? Quem era ele para saber o que eu queria ou não? Ele não conseguia respeitar a minha individualidade? E lá estava eu de novo...olhando para as costas dele. Então falei:

- Vou trazer um cobertor e um travesseiro pra colocar no sofá.

Achei que ele tinha virado uma estátua de sal, mas percebi que não, pois depois de quase um minuto ele virou para mim de novo.

- Como é?
- Minha dicção está ótima, David, você me entendeu perfeitamente.
- Mas por que eu vou dormir no sofá? O que foi que eu fiz?

Dá para acreditar? Olha só a pergunta que ele me faz. Uma pergunta tão idiota não precisava de uma resposta.

- Não vai me responder?

Terminei meu lanche e sai da cozinha, passando por ele, que ainda aguardava, provavelmente, nascerem raízes nos pés. Enquanto ele tomava banho eu deixei suas coisas no sofá, subi, me aprontei depois do banho e deitei. Se eu me senti só? Com certeza. Mas ele merecia. Eu acho. Talvez tenha sido muito dura com ele. Ele é sempre tão compreensivo. Mas ele merecia. Não precisava ter sorrido para mim daquele jeito. Pensei em ir e chamá-lo de volta umas três vezes. Mas eu não poderia ceder. Ele estava errado e merecia uma lição.

E dormi.

Na manhã seguinte eu fui acordada pelo despertador. Ou ele por mim, já que o joguei na parede. Me espreguicei e vi, acima do meu criado mudo, uma caixa em formato de coração. Ele havia deixado ali, já que sempre saia mais cedo que eu. Meu coração acelerou. Abri e tinha trufas. As minhas preferidas. E um papel escrito "Para a mulher mais linda do mundo." Eu abri um sorriso de orelha a outra. E depois chorei. Não deveria ter feito aquilo com ele. Ele não merecia de verdade. Decidi perdoá-lo. Estava disposta a fazer uma surpresa para ele à noite. Logo pensei naquela camisola que ele tanto gostava de tirar de mim.

Estava tudo bem. Tudo bom. Mas eu sabia, lá no fundo, que quando a noite voltasse, tudo ia acontecer de novo. Não consigo controlar. Não consigo fazer ele escapar de mim quando estou assim. E ele sabia disso. Sabia sim. Eu sei. Sei, porque quando fui abrir a geladeira, o infeliz tinha deixado lá mais quatro caixas de chocolate com frases diferentes.


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1 Comentários

Anônimo disse…
Muuuito bom! hahaha Otimo texto (: