OS BOICOTES DE BENVINDO

Conto de Gustavo do Carmo





Cancelou a assinatura do jornal. Levou um esporro da sua mãe, que foi dramática:

— Por que você cancelou a assinatura do jornal, meu filho? Você gostava tanto!
— Agora não gosto mais. Enjoei. E ainda por cima o jornal está me tomando tempo e atrasando o meu trabalho na internet.
— Então não leia!  Ou deixe pra ler depois!
— Mas aí eu vou gastar dinheiro à toa com a mensalidade. E quando eu tiver tempo pra ler, ele já vai estar passado.
— Você sabe muito bem que eu leio. Agora como eu vou descer pra comprar o jornal todos os dias? Sabe que eu não tenho mais idade pra andar na rua. Você nem me deixa mais sair de casa sozinha! Agora vai ter que comprar o jornal na rua todos os dias pra mim, então.
Benvindo pegou o telefone sem fio da base e o deu para a mãe.
— Toma. Liga você e refaça a assinatura no seu nome.

Na verdade, ele não queria mais ler o jornal porque descobriu que um ex-colega da faculdade de jornalismo estava assinando uma coluna de destaque no periódico que assinava. Não aceitava que o ex-amigo, que parou de procurá-lo, ganhasse muito dinheiro e ficasse famoso enquanto ele sofria com a falta de padrinhos para empregá-los em algum veículo de comunicação e a cobrança do pai para que ele arrumasse um emprego qualquer, em alguma área que odeia.

Já havia parado de ler o tabloide esportivo que comprava todos os dias porque seu ex-melhor amigo Agenor também estava trabalhando lá.  Aliás, ele e mais quatro ex-colegas, que Agenor preferiu indicar em vez dele. A desculpa que o ex-colega deu era que Benvindo não se encaixou na vaga, não queria trabalhar de graça e nunca corria atrás.

Benvindo sempre ouviu essa desculpa. Como se fosse fácil correr atrás. É mais fácil falar. Pimenta nos olhos dos outros é refresco. Ninguém compreendia a sua timidez excessiva.

Começou a boicotar também o cantor que gostava, ao descobrir que ele era sogro de uma ex-colega, da panelinha do Agenor. Depois a novela que tanto gostava. Soube que a nora deste cantor entrou no meio da história, como atriz.

A vontade de cancelar a TV por assinatura foi grande. Descobrira que a ex-colega de pós-graduação mais próxima - e que o boicotara no final do curso - estava trabalhando lá como repórter de vídeo. Para evitar outra bronca da mãe, deixou quieto. Nem tirou o canal de notícias do pacote. Simplesmente parou de assistir a telejornais, inclusive os da televisão aberta.

Quando os pais, a irmã e o cunhado entravam na sala perto dele, Benvindo saía para não assistir aos jornais. Só voltava depois que acabava a novela das nove, pois era nesta que trabalhava a sua ex-colega, a nora do seu ex-cantor preferido.

Seu comportamento já começava a preocupar a família. Benvindo passou a evitar as festas de aniversário familiares. Boicotava a felicidade dos parentes. Até a da própria irmã. E por duas vezes. A moça ficou aborrecida, sentimento logo substituído pela preocupação, seguida de uma bronca.

— Você está se comportando como um retardado!
— Não me enche o saco! Eu não quero ver jornal e pronto! Você também não vê!
— Mas eu não vejo porque não tenho tempo! Você é jornalista!
— Não sou mais! Não me considero mais jornalista! Cansei dessa profissão hipócrita! Quer liberdade de expressão, mas só fala o que lhe interessa. Critica o preconceito dos outros, mas esnoba quem está abaixo deles! Jornalistas só querem saber de gente que os eleva, que os bajula! Que puxa os seus sacos! Mas eu não vou mais bajular ninguém. Jornalista pra mim agora é lixo!
 — Então por que fez jornalismo, então?
— Porque eu queria trabalhar em revistas de carro.
— Por que não procurou emprego nelas, então?
— Porque estão todas em São Paulo e não quero me mudar pra lá.

De fato, Benvindo também odiava São Paulo. Não o lugar, nem os paulistas. Mas a mania dos governantes, da sociedade e da mídia de concentrar tudo lá. Estava farto de ouvir que era a cidade mais rica, mais importante do país, o motor do Brasil. Para ele, era tudo desculpa de quem não tem o poder para reagir.

Já boicotava telejornais que rasgavam seda demais de São Paulo. E também qualquer programa da única emissora carioca do país produzido lá. Telejornais principalmente. Voltando à discussão com a irmã, ela o indagou:

— Se você não quer mais ser jornalista, nem publicitário, vai fazer o quê, então? Não sabe fazer nada. Por que não trabalha na loja do papai?
— Porque não gosto daquele lugar.

Realmente, Benvindo não gostava de trabalhar na loja do próprio pai. Boicotava a própria fonte de sustento. Tentou trabalhar lá, mas não se adaptou. Culpa da ausência paterna. Também achava o lugar pobre, mal frequentado. Seu pai já tinha sido assaltado duas vezes na estrada para lá e sofrido uma ameaça de sequestro. Além da proximidade com a cidade onde moravam a ex-colega de pós-graduação mais próxima que estava trabalhando na emissora de TV a cabo e o seu novo namorado, também da mesma turma da pós e seu ex-amigo. 

— Quero ser roteirista agora. Ou trabalhar como produtor. Estou procurando emprego para isso. E também quero relançar o meu livro, que foi boicotado por aquela editora vagabunda.
— Está tentando, mas não vai conseguir. Você não está se informando. Encerrou a irmã.

 Milagrosamente, Benvindo conseguiu que um diretor de teatro encenasse um dos seus contos. O melhor deles. Ficaria rico e conquistaria a tão sonhada independência financeira e familiar. Iludiu-se. Decepcionou-se.

A atriz escolhida para ser a protagonista da peça foi justamente a sua ex-colega de faculdade, a tal nora. Ou melhor, ex-nora do seu ex-cantor favorito. Ela era muito amiga do produtor e diretor da peça. Por isso, este se recusou a tirar a moça do elenco. Era ela ou não adaptava. A peça não saiu do papel. Benvindo passou a boicotar os trabalhos do diretor. Também perdeu três oportunidades por causa da sua desinformação.

—Meu filho, você está ficando doente! Censurou o pai. — Não está vendo mais jornal, não está mais lendo jornal. Até os seus livros você está boicotando! Eu vou morrer e vou te deixar à míngua. Não quer fazer um concurso público. Assim eu vou te deserdar. 
— Estou me informando pela internet. Respondeu.

Estava. Benvindo passou a boicotar a grande rede também. Até os seus sites de automóveis favoritos passaram a ser boicotados. Abandonou os próprios blogs. Cancelou todas as suas contas nas redes sociais. 

Os livros foram abandonados porque Benvindo se cansou de dar público a editora e autor que o esnobavam.

Cada vez mais isolado, o pai tentou colocar o filho no psiquiatra. Benvindo já tinha se tornado um bobo.  Mesmo assim, o filho não aceitou. Estava cansado de gastar dinheiro com falsos especialistas que ficavam cada vez mais ricos e esnobes. Foi internado. Ouviu que ele se boicotava a si próprio. Um dia, boicotou a própria vida. Se negou a ficar no céu quando encontrou sua ex-amiga da pós-graduação, que trabalhava na emissora de TV a cabo. Ela padeceu por causa de um câncer de mama. Na nova vida espiritual estava namorando Agenor. Benvindo preferiu ir para o inferno. Mas brigou com o Diabo e ficou vagando pelo purgatório. 

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