gritarão liberdade e morte aos déspotas de todos os confins

de Miguel Angel
  Arrastada pelo grupo que a capturara, Amanda, condenada às sevícias se renovando em crueldade ao sabor da escolta que a vigia; à alimentação rala que não demove a fome nem supre carências, às noites friorentas, à chuva que encharca os ossos, ao coaraci queimando a pele e o ar que respira, as ameaças de morte com que tentam aterrorizá-la são badaladas de bons augúrios para quem a vida tornou-se pesadelo e a cada noite fantasia nunca mais despertar. E é numa dessas noites de escuridão insondável, que sonha acordar com ruídos surdos provocados por silhuetas sombrias que levam punhal nos dentes e nas mãos, o barulho é das gargantas cortadas da soldadesca que morre dormindo, inermes pelo álcool e o cansaço. Amanda sonha que, com prontidão, é alçada do chão, e inquietas silhuetas de soldados a cercam, a agarram e, puxando-a pelos braços, levam-na consigo; embrenhando-se na noite, é conduzida por trilhas, passa riacho; passa matagal; pula vala; arrastada ao tropeçar e cair; correndo quando quer estacar; e por fim, desperta do sonho que não era e a madrugada inebriante da selva ilumina um bando de mulheres exauridas e maculadas de sangue, dos cabelos aos esfarrapados uniformes que envergam. Apresentam-se como Amazonas Paraguaias, cujo lema e causa é morte aos tiranos; vida longa aos pais, filhos e irmãos; desforra por eles mortos é outra divisa a nortear a bravura e a impiedade nas matanças.
Amparada por elas, Amanda, instada pelos padecimentos e pelo ódio a seus algozes, se somará ao bando e com ele marchará vagando por serras e areais, se alimentará de víveres roubados e de raízes e vermes silvestres; beberá nos córregos; galgará montes; carregará pesadas caixas de projéteis surrupiados dos inimigos e, a cada semana, o batalhão farroupilha irá crescer em número com sobras de famílias paraguaias, que preferem o perigo e o desconsolo das matas, a sujeitar-se aos ultrajes do exército ditador. Porém, o ódio que as municia, engendra desagravo contra os homens de qualquer exército e, predispostas a morrer, o farão matando nas barricadas improvisadas ou assombrando no abismo das noites, compondo sua própria legião, rediviva depois de cada embate. Se aprisionadas, serão queimadas vivas como Joanas santas, pagarão o preço da revolta com mutilações em seus corpos franzinos, e na fileira de fuzilamento, gritarão liberdade e morte aos déspotas de todos os confins.
Na fogueira dessa sua nova aurora, Amanda teve seu nome convertido em "Lluvia".
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Extraído do romance "Sobre Moscas e Aranhas de Guerra" de Dalton W. Reis

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1 Comentários

Excelente!
A ficção que é realidade em países da América Latina e noutros cantos do Mundo.
Tal como o e-mail do tigre que me enviaste, porque é que os homens não se poderão dar bem?

Abraços!