ESCRITOR CARIOCA

Por Ed Santos







Quando estive no Rio de Janeiro pela primeira vez quase não vi nada, era noite e vinha de um trabalho em Campos dos Goitacazes. Parei prum chope. À noite. Coisa de paulista. Depois estive também de passagem indo de férias pro nordeste por duas vezes, mas nunca havia me hospedado. Desta vez fiquei e fiz questão de me encontrar com o "patrão" aqui do TC. Enfim nos conhecemos pessoalmente, jantamos, conversamos, trocamos livros e demos algumas risadas. Ele até me isentou de não postar nenhum texto no TC naquele final de semana. Mas agora cá estou e resolvi homenagear aos colaboradores do TC lembrando um poema de Carlos Drummond de Andrade, conhecido por seu amor pelo Rio de Janeiro, cidade pela qual também (sem nenhuma novidade!) me apaixonei. Sendo assim, este poema é uma homenagem ao Rio, aos cariocas e aos escritores, que hoje comemoram seu dia. PAZ!


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Retrato de uma cidade

                     I
Tem nome de rio esta cidade
onde brincam os rios de esconder.
Cidade feita de montanha
em casamento indissolúvel
com o mar.

Aqui
amanhece como em qualquer parte do mundo
mas vibra o sentimento
de que as coisas se amaram durante a noite.

As coisas se amaram. E despertam
mais jovens, com apetite de viver
os jogos de luz na espuma,
o topázio do sol na folhagem,
a irisação da hora
na areia desdobrada até o limite do olhar.

Formas adolescentes ou maduras
recortam-se em escultura de água borrifada.
Um riso claro, que vem de antes da Grécia
(vem do instinto)
coroa a sarabanda a beira-mar.
Repara, repara neste corpo
que é flor no ato de florir
entre barraca e prancha de surf,
luxuosamente flor, gratuitamente flor
ofertada à vista de quem passa
no ato de ver e não colher.

                         II
Eis que um frenesi ganha este povo,
risca o asfalto da avenida, fere o ar.
O Rio toma forma de sambista.
É puro carnaval, loucura mansa,
a reboar no canto de mil bocas,
de dez mil, de trinta mil, de cem mil bocas,
no ritual de entrega a um deus amigo,
deus veloz que passa e deixa
rastro de música no espaço
para o resto do ano.

E não se esgota o impulso da cidade
na festa colorida. Outra festa se estende
por todo o corpo ardente dos subúrbios
até o mármore e o fumé
de sofisticados, burgueses edifícios:
uma paixão:
a bola
                o drible
                               o chute
                                             o gol
no estádio-templo que celebra
os nervosos ofícios anuais
do Campeonato.

Cristo, uma estátua? Uma presença,
do alto, não dos astros,
mas do Corcovado, bem mais perto
da humana contingência,
preside ao viver geral, sem muito esforço,
pois é lei carioca
(ou destino carioca, tanto faz)
misturar tristeza, amor e som,
trabalho, piada, loteria
a mesma concha do momento
que é preciso lamber até a última
gota de mel e nervos, plenamente.
A sensualidade esvoaçante
em caminhos de sombra e ao dia claro
de colinas e angras,
no ar tropical infunde a essência
de redondas volúpias repartidas.

Em torno de mulher
o sistema de gesto e de vozes
vai-se tecendo. E vai-se definindo
a alma do Rio: vê mulher em tudo.
Na curva dos jardins, no talhe esbelto
do coqueiro, na torre circular,
no perfil do morto e no fluir da água,
mulher mulher mulher mulher mulher.

                                      III

Cada cidade tem sua linguagem
nas dobras da linguagem transparente.
Pula
do cofre da gíria uma riqueza,
do Rio apenas, de mais nenhum Brasil.
Diamantes-minuto, palavras
cintilam por toda parte, num relâmpago,
e se apagam. Morre na rua a ondulação
do signo irônico.
Já outros vêm saltando em profusão.
Este Rio...
Este fingir que nada é sério, nada, nada,
e no fundo guardar o religioso
terror, sacro fervor
que vai de Ogum e Iemanjá ao Menino Jesus de Praga,
e no altar barroco ou no terreiro
consagra a mesma vela acesa,
a mesma rosa branca, a mesma palma
à Divindade longe.

Este Rio peralta!
Rio dengoso, erótico, fraterno,
aberto ao mundo, laranja
de cinqüenta sabores diferentes
(alguns amargos, por que não?),
laranja toda em chama, sumarenta
de amor.
Repara, repara nas nuvens; vão desatando
bandeiras de púrpura e violeta
sobre os montes e o mar.
Anoitece no Rio. A noite é luz sonhando.




 
Carlos Drummond de Andrade © Graña Drummond

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3 Comentários

gustavocarmo disse…
Valeu! Foi um prazer me encontrar com você. Ainda mais em um hotel quatro estrelas na zona sul (hehehe).

Volte sempre!
Poema lindo, sem dúvida!
O "patrão" não quererrá dar um saltinho a Portugal e jantar com o seu único colaborador estrangeiro? eheheheh!!!!

Abraços!
gustavocarmo disse…
Bem que eu gostaria. Mas, infelizmente, falta dinheiro para ir até aí em Portugal.

Quem sabe um dia marcamos um encontro de colaboradores e ex-colaboradores do Tudo Cultural?

A cada ano num lugar.