SÁBADO À TARDE

Por Ed Santos



Fiquei só espiando. Ele estava já há uns vinte minutos ali a dormir. Tinha ido ao centro de manhã e como era sábado, encontrou alguns amigos pela rua. Foram comer alguma coisa e depois é isso aí que eu vejo.
Lógico que devem ter tomado aquela cachaça “braba” que cheira forte e de longe se sabe até quanto tempo ela ficou envelhecendo. Ele é extremamente metido à besta, e quando acordar vai dizer: “beber cachaça é uma arte, não é como tomar pinga no boteco!”. Essa eu já ouvi várias vezes.
Ele chegou suado da rua e foi pra sala. Tirou só um sapato. Colocou o pé direito na almofada e o esquerdo ficou no chão. Nem percebeu que o pé que estava calçado era o que estava na almofada. Desabotoou a camisa e ligou a televisão. Antes do intervalo, já estava roncando. Os meus amigos lá fora devem viver pensando em como eu consigo habitar debaixo do mesmo teto que esse escroto de barriga grande. Eles não sabem que o sacrifício é muito maior do que imaginam. Esse apartamento fede!
Ele continua lá roncando. Agora, uma indelicada e intrigante baba escorre-lhe a boca. A cena é patética e ponho-me de costas, recusando-me infinitamente a compartilhar com aquele momento ordinário e caótico. Mas não tem jeito, volto a olhar.
O ócio do moribundo naquele cenário é uma tortura. Como posso aceitar essa inconveniência? Já já ele começa a esvaziar os intestinos. Tudo aqui é nojento, cheira a mofo. O que fazer pra manter a minha dourada veste imune a todas essas interferências aromáticas? Aquilo tudo impregnava qualquer coisa, ainda mais minha roupa, tão bela, da cor da gema do ovo.
Segundo ato. Um novo personagem vem enriquecer a cena. O zumbido de uma abelha interrompe aquele apagão, e seu pouso certeiro é fundamental para resgatar o barrigudo babão à luz.
Como um caracol, se rasteja até o controle remoto que havia deixado sobre a outra poltrona e muda o canal. Para num programa desses que falam sobre a natureza, animais, etecetera, e me olha, enfim. Do alto da minha ingenuidade tento um contato, um único contato quem sabe. Talvez ele ao menos sorria neste fim de tarde quente de sábado. Qual nada! Ele fez foi gritar comigo: “Canta canário de merda!”. Todo sábado é assim. Quando vejo ele daquele jeito, fico triste e não canto.

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