POSSO FICAR TE DEVENDO 1 CENTAVO?

Por Gustavo do Carmo



A famosa pergunta lembrada no antigo comercial daquela sumida companhia telefônica (é a Intelig) já nem é mais usada pelos caixas de supermercado e pequenos comerciantes. Arredondam logo o valor da mercadoria para cima.

Acontece muito quando eu vou comprar refrigerantes em um mini-mercado de Bonsucesso, onde moro. Se o total da compra é de R$ 10,98 e eu dou onze reais, eles não retornam o troco, sem nenhuma cerimônia. Quando soma R$ 6,96 e dou dez reais para agilizar a fila, evitando catar as moedinhas no bolso da minha calça, que serve de porta-níqueis, eles dão apenas três reais, sem os quatro centavos ou mesmo cinco.

Por educação e para não passar a imagem de pão duro e ranzinza, nas primeiras vezes eu nem me importava. Mas a frase da freguesa do comercial não saía da minha cabeça: “E se fosse o contrário? Eu poderia ficar te devendo um centavo?”. Até que na décima vez, eu não agüentei e perguntei ironicamente: Vem cá? Vocês vão me dar um desconto nas próximas compras, não vão? Contrariada, a caixa me deu os quatro centavos que faltavam. Quatro centavos. Não é nem mais 1 centavo que eles sonegam de troco ao cliente.

Quando o cliente repete na vida real a atitude da moça do comercial, os balconistas e caixas abrem aquele sorrriso amarelo de constrangimento e nos deixam sem resposta, que é NÃO. O centavo que não faz falta para o consumidor de classe média comum, faz para o comerciante. Se todos os clientes deixarem de pagar a diferença a mais, o caixa do comércio teria um prejuízo e tanto. Mas a receita que eles já têm com o troco que sonegam (e de alguns que até rejeitam) já equilibra e até dá ainda mais lucro.

A sonegação do pequeno troco incentiva a inflação. Era o que sempre diziam a cada mudança de moeda. No tempo do corte dos três zeros, quando 1.640 cruzados se transformaram em 1,64 cruzados novos, os comerciantes arredondavam logo para NCz$ 1,65 ou até para NCz$ 1,70. No início da entrada em vigor do Real, em primeiro de julho de 1994, ocorreu a mesma coisa. O troco ficou ainda mais difícil porque os preços do Cruzeiro Real eram divididos pelo índice chamado URV e o quociente geralmente saía quebrado. A campanha da mídia para valorizar o troco era ainda mais intensa.

O comércio se defende, até hoje, pondo a culpa da sonegação do troco, com razão, na falta de moedas e na mania do comprador de pagar com dinheiro inteiro. O Banco Central reforça o estoque de pratas, mas não adianta. Quatorze anos depois (nada de arredondar para quinze), as pessoas que se lembram dos centavos não percebem que nem ouvem mais a velha pergunta: Posso ficar te devendo 1 centavo? Dá vontade de pagar tudo com balinha.

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Esta crônica foi publicada há um ano no extinto blog Livro Aberto, da Lunna Guedes, para o qual eu tive o prazer de colaborar por alguns meses e que me inspirou a montar a minha equipe de colaboradores semanais. Hoje, queimei a minha língua. Pelo menos no Supermercado Prezunic. Tive a coragem de perguntar se eu poderia ficar devendo 1 centavo numa compra de R$ 160,36. E a resposta foi sim. Sem nenhum sorriso amarelo. Se o comercial ainda está vivo na memória das caixas de supermercado eu não tenho certeza, mas o mundo não está perdido.

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2 Comentários

Anônimo disse…
Boa crônica. Acho que o mundo também não está perdido nos lugares que freqüento. É habitual apresentar os produtos e ouvir o caixa arredondar para baixo até 2 centavos (como 3,97 para 3,95), enquanto o arredondadamento para cima eu mesmo espero (de 3,98 para 4,00). Acho justo. Estatisticamente, ao fim do dia o caixa terá o mesmo valor que teria sem arredondamentos. Um abraço, Fabrício
Rachel Souza disse…
Se não tivesse usado o gerúndio, eu até deixava...rsrs