ENTREVISTA - SANDRO FORTUNATO



Por Gustavo do Carmo, via e-mail



No dia 20 de abril a Dica da Segunda foi o ótimo site histórico Memória Viva ( http://www.memoriaviva.com.br/ ), criado pelo jornalista Sandro Fortunato, que ganhou vários prêmios e está completando dez anos em 2008 e fazia aniversário naquela data. Na ocasião prometi uma entrevista com o seu editor. E é o que você vai acompanhar agora aqui no Tudo Cultural.

Ele fala do surgimento do site, da sua forma de pesquisa, de como começou a disponibilizar as edições online das antigas revistas O Cruzeiro, O Malho e Careta, dá a sua opinião sobre a burocracia das bibliotecas e critica duramente o Wikipédia.


Por que o Memória é dedicado às personalidades já falecidas? Tem planos para fazer biografias vivas?
É mais fácil trabalhar com quem já morreu porque eles não costumam reclamar. Brincadeira à parte, é realmente complicado lidar com o ego no mundo dos vivos. Sempre pensei em fazer do Memória Viva um Memória Viva dos Vivos, mas além de muita gente que eu gostaria de colocar lá já ter seu próprio site, encontrei alguns obstáculos: o homenageado não entender a função do trabalho, não ter contato com a Internet e até por isso desconhecer sua importância como veículo de informação, querer interferir no trabalho a ponto de descaracterizá-lo e por aí vai. Para compensar essa "falta", criei em 2004 o Memória Viva Hoje, uma área mais quente, de jornalismo, que cumpriria essa função através de entrevistas e depoimentos. Digo "cumpriria" porque nunca consegui colocar no ar, com alguma regularidade, o material produzido. Todos são no nível da entrevista/depoimento do Anselmo Duarte ( www.memoriaviva.com.br/anselmo.htm ). Duvido alguém encontrar um material sobre ele, na Internet, como o publicado pelo Memória Viva. E olha que nem está na íntegra. Como esse, foram feitos outros maravilhosos com os jornalistas e escritores José Louzeiro e Gonzaga Jr., com o diplomata Lauro Moreira (que foi casado com a poetisa Marli de Oliveira e teve como padrinhos de casamento Clarice Lispector e Manuel Bandeira), com Maria Mathilde e Fernanda Dias (filha e neta de Cecília Meireles e Fernando Dias), só para citar alguns. Tudo inédito. Parte disso ainda irá ao ar, mas acredito mesmo que as íntegras dos depoimentos acabarão, um dia, em livro.


A Luz Del Fuego era uma das personalidades admiradas que você procurava quando decidiu criar o site?
Luz de Fuego deu origem ao Memória Viva. Eu havia lido uma biografia dela em 1996 ou 1997 e estava fascinado por sua história. Quando surgiu a web, quis saber mais. Como? Onde? Não havia nada. Tomei o caminho contrário. Fiz um site para ela no antigo Geocities. Como não exisitia nada parecido na época e tudo na web brasileira era novidade, imediatamente ele começou a ser mostrado nas revistas e cadernos especializados. Gostei do resultado, da idéia, e no mês seguinte - abril de 1998 - já entrava no ar o Memória Viva.

Quando você teve dificuldades de encontrar as tais biografias, você pesquisava apenas por prazer ou precisava fazer algum trabalho, como a monografia da faculdade?
Nunca nada relacionado ao Memória Viva foi iniciado ou esteve ligado a alguma obrigação ou atividade externa. Tudo sempre foi produzido exclusivamente para ele. Desde o início, quando minhas fontes de pesquisa eram apenas os livros que existiam em meu quarto até os dias de hoje quando viajo para qualquer parte do Brasil atrás de uma matéria ou para fazer uma pesquisa. Se você vasculhar o Memória Viva, principalmente o Memória Viva Hoje e o Blog, vai perceber que já fiz matérias em várias cidades do Rio de Janeiro, São Paulo, Minas, Distrito Federal, Paraná e Rio Grande do Norte, dentre outros lugares. Foi (e é!) um prazer que virou ofício. Como faço tudo sozinho - desde a pesquisa mais básica até a disponibilização de qualquer material no site - muitas vezes sou atropelado por mim mesmo. Costumo dizer que o Memória Viva, que virou uma referência de pesquisa, como está no ar hoje, pareceria um trabalho de ensino fundamental se comparado ao material produzido e que nunca foi ao ar. Tudo isso começa a desembocar em outra vias. No momento, estou escrevendo a biografia de Appe ( www.memoriaviva.com.br/appe ) e pesquisando para outra, a de Carlos Estevão ( www.memoriaviva.com.br/carlosestevao ), ambos desenhistas da revista O Cruzeiro ( www.memoriaviva.com.br/ocruzeiro ). Paralelamente, outras pesquisas foram acontecendo. Há sites, criados há anos, para Getúlio Vargas, Carlos Lacerda e Lima Barreto (esse entrará no ar em 2008). São gigantescos e com tanto material inédito, raro ou pouco conhecido, necessitando de tanto cuidado, principalmente, com revisão de texto, que acabaram sendo colocados no final da fila. Nenhum desses trabalho daria uma monografia da faculdade. Dariam, no mínimo, uma tese de doutoramento. Só que sem a chatice e embromação que geralmente as acompanham. Minhas áreas são comunicação e preservação histórica. Desejo que todos tenham acesso ao conhecimento e possam entender qualquer informação dada.

Como você faz as pesquisas dos seus biografados?
Da mesma forma que qualquer outro pesquisador: caindo em campo. Como sou jornalista, a primeira coisa é recorrer a fontes primárias. No caso, o mais comum são os familiares mais próximos. Em seguida, vou a qualquer acervo ou pesquisa anterior que seja confiável. Já fiz pesquisas em várias bibliotecas e acervos de Brasília, São Paulo, Rio de Janeiro, Londrina, Natal, etc. Na Biblioteca Nacional foram raras e quase nunca relacionadas a algo para o Memória Viva.

Você concorda que a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro tem muita burocracia para os pesquisadores? É preciso consultar (com dificuldade) no computador e preencher corretamente e totalmente o formulário de catalogação, senão eles não entregam o material que você pediu. Você já se estressou alguma vez ao fazer pesquisa lá?
Dificilmente me estresso com alguma coisa. Ainda mais com o mau humor de gente que é paga para atender os outros. Não tenho culpa alguma pelas frustrações alheias. Existe sim, na maioria das bibliotecas - e um caso terrível é o da Biblioteca Nacional -, uma burocracia que atrapalha muito o bom andamento de qualquer pesquisa. Também há uma diferença entre pesquisadores experientes e/ou reconhecidos e o público comum. Quando você se impõe e mostra que sabe o que quer, você acaba conseguindo o que está buscando. O Memória Viva é suficientemente conhecido para facilitar meu acesso a muitos acervos que, normalmente, não estão abertos ao público comum. Eu até acho necessário que exista uma biblioteca como a Nacional do Rio, que preserve "tudo que existe", mas dificultar acesso ao conhecimento é um contrasenso para uma instituição que deveria justamente prover isso. Foi o que pensei em fazer com o Memória Viva quando o criei: dar acesso irrestrito à informação e ao conhecimento.

Como você decidiu levar o conteúdo da Cruzeiro para a internet? E as demais (O Malho e Careta)?
Em 2002, eu trabalhava na Secretaria de Comunicação Social do Senado Federal e estava colaborando com a edição de uma revista. Havia uma matéria sobre o centenário de Juscelino Kubitschek e no Senado, por incrível que pareça, só havia uma foto oficial de JK. O "editor do Memória Viva" entrou em ação e saiu buscando imagens de JK. Voltei com mais de cem, boa parte delas conseguidas em exemplares da revista O Cruzeiro. Durante a pesquisa, xeroquei ou digitalizei tudo que achei interessante, nas revistas, para futuras biografias no Memória Viva. No ano seguinte, o site foi para sua primeira final no Prêmio iBest. Achei que era hora de colocar novo material nele. Pensei em algo relacionado a O Cruzeiro. Ainda elaborando como seria isso, surgiu a idéia de fazer um site para a revista como se ela ainda estivesse chegando às bancas. A cada semana eu colocava uma nova edição. Foi um grande barato. Mantive isso por quase um ano. Dava um trabalho danado! Depois de colocar umas 40 edições, passei a colocar só eventualmente alguma especial. Careta e O Malho apareceram no rastro dessa experiência com O Cruzeiro, mas já com algumas modificações como a apresentação da página original, que era uma curiosidade demonstrada, por e-mail, pelos internautas.

As revistas que você resgata são suas ou emprestadas? Se forem suas, você já as tinha antes do site ou comprou no sebo depois do sucesso do site?
Coleciono revistas desde minha infância. Primeiro quadrinhos, depois revistas semanais e, depois dos 20 anos, revistas antigas. O interesse e a coleção aumentaram consideravelmente com o trabalho do Memória Viva. Parte do que vai ao ar é de meu acervo pessoal, mas há também muito material pesquisado e digitalizado a partir de outros acervos.

Na Dica da Segunda mencionei a antiga revista Realidade, da Editora Abril. Por que seu conteúdo ainda não foi disponibilizado?
Porque o título pertence a Editora Abril e seria preciso autorização ou uma parceria para que fosse possível viabilizar algo assim. Não está nos meus planos fazer isso porque seria um trabalho gigantesco e muito caro. Tenho uma coleção completa de Realidade e, por isso mesmo, resolvi fazer a catalogação. Inicialmente porque isso auxilia em minhas próprias pesquisas. Como também pode auxiliar nas de outras pessoas, resolvi compartilhar a catalogação e disponibilizá-la no Memória Viva. Começa a ir ao ar (os dois primeiros anos) a partir da primeira semana de maio. Será possível pesquisar os títulos das matérias publicadas, quem estava presente em cada edição, temas, palavras-chaves, mas o conteúdo não será disponibilizado.

O que acha do relançamento das revistas Rolling Stone e Mad?
Ambos são títulos americanos, de grande sucesso e longevidade, que têm histórias ramificadas no Brasil. É importante saber que, apesar de manter certas características, elas são bem diferentes hoje em relação a quando foram lançadas, tanto nos Estados Unidos quando aqui. A Rolling Stone americana, quando apareceu, e sua versão brasileira nos anos 70 tratavam do movimento de contracultura, que para muitos existiu somente nos Estados Unidos. Teorias a a parte, aqui tínhamos ecos disso. Ainda assim, o tratamento era diferente. A versão brasileira era mais desbundada, mais "fã"; a americana era mais crítica. RS se impôs no mercado editorial americano, virou uma lenda e hoje tem versões espalhadas por todo o mundo. É uma revista de variedades. Acho legal que exista por aqui. Mais legal quanto mais material nacional tiver nela. Ficar traduzindo matéria gringa e empurrando a cultura deles goela abaixo dos brasileiros é uma idiotice. Quanto a MAD, é mais uma questão de "quem quer editar agora" do que relançamento. A MAD brasileira é a cara do Ota. Enquanto ele fizer parte, a MAD será sempre a MAD. Se ele sair, vai virar revistinha traduzida por boyzinho que pensa que falar em inglês é sinônimo de inteligência. Sendo assim, particulamente, prefiro comprar a original.

A Seleções era uma revista de grande sucesso nos anos 50. Hoje em dia fica bem escondidinha no jornaleiro. Sua atual estratégia de marketing é a venda de assinaturas através daquela promoção de prêmios de caráter duvidoso. Você acha que eles deveriam mudar o conceito e o formato para concorrer com Veja, Época e IstoÉ? Tem planos de divulgar a versão antiga da revista?
A Seleções tem uma proposta completamente diferente de uma revista semanal de jornalismo. É uma revista "para a família", de leitura amena. Não tenho qualquer plano em relação a ela até porque meu foco é voltado para revistas brasileiras. Seleções é mais uma versão.

Você gostaria de ver reeditadas as revistas que você resgata no Memória Viva? Acredita que elas fariam sucesso no mercado de hoje?
Seria interessante fazer edições comemorativas. O mundo mudou, o mercado mudou, o público mudou e o jornalismo mudou (para pior, infelizmente). Elas teriam que mudar para fazer sucesso hoje.

O que você acha daquele especial "Por toda a minha vida" da Rede Globo? Por enquanto é limitado à música, mas acha que deveria falar de outras personalidades? Você alguma vez se sentiu plagiado com o programa?

Assisti a um ou dois, muito de passagem. Não gosto muito dessa mistura de má pesquisa histórica disfarçada de jornalismo misturada com novelinha. Se for feito com seriedade e de forma criteriosa, acho ótimo. Colocar o povo para ouvir Elis Regina sempre vai ser melhor do que enchê-lo do lixo que aí está. Plagiado?! Claro que não. Antes de mim já faziam trabalhos como esse e, espero, continuem surgindo muitos outros. Mas aconteceu algo interessante em relação a outro programa da Globo, o Linha Direta Justiça. Houve um tempo em que eles estavam abordando histórias com as quais eu estava trabalhando. Eu achava estranhíssimo ver uma chamada na tevê sobre algo com o qual eu estava envolvido. Parecia perseguição! "Nos bastidores", isso me rendeu uma tremenda experiência pela oportunidade de comparar um trabalho com fins comerciais a ser exibido em um veículo de comunicação de massa com outro com fins memorialísticos. Várias vezes vi nos programas o aviso de que "Fulano (algum envolvido na história) não quis falar à reportagem" e eu pensava "Mas comigo ele falou".

Com o wikipeédia, as pesquisas na internet agora estão mais fáceis. Isso não atrapalha a audiência do site?
Mais fáceis para quem NÃO pesquisa, para quem quer tudo mastigado. A Internet é gigantesca e eu não sou a Globo e nem mesmo tenho uma empresa com fins lucrativos para querer ter toda "a audiência" para mim. Quantos mais sites como o Memória Viva - que preservem nossa cultura, nossa História e ofereça informação e conteúdo gratuitamente, melhor. Isso de forma confiável e criteriosa, o que, definitivamente, não é o caso da Wikipedia. Eu jamais confiaria em qualquer coisa escrita lá (em inglês e em alemão, são muito boas, mas em português é uma desgraça). Mas se você fizer algumas pesquisas nela - e nem precisa se esforçar muito - vai encontrar muita coisa copiada do Memória Viva. Algumas vezes, creditada.

Já postou algum dado lá?

Não e nem perderia meu tempo com isso. Amanhã alguém poderia tirar a informação correta que deixei e colocar uma besteira qualquer no lugar.

Acredita naquela máxima de que "Todo brasileiro tem memória curta"?
O Memória Viva nasceu do FATO de que brasileiro tem memória curta. Muito curta, por sinal. Não lembra em quem votou nas últimas eleições; não lembra dos podres acontecidos em governos passados... Mas "TODO brasileiro" é uma generalização. Grande parte; não todos.

A entrevista foi respondida por e-mail entre os dias 14 e 23 de abril. A novidade é a seção Número 1, com a capa da primeira edição de várias revistas históricas, entre elas a Realidade, que ainda não teve a prometida catalogação anunciada em maio.

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2 Comentários

Anônimo disse…
Ficou legal a entrevista. Gostei desse tal de Sandro. ;) Quanto à catalogação, a parte prometida está on line há alguns meses, vem sendo testada por algumas pessoas e, durante esse período, tem sido ampliada e melhorada. Só falta liberar para o público em geral. Isso pode acontecer a qualquer momento.